domingo, junho 27, 2021

Problematizando


– Professor, tô com uma dúvida aqui… Quer dizer, mais de uma.

– Humm… O que é? Vou ver se dá pra responder.

– Esse problema aqui começa: “Joãozinho foi ao mercado e comprou 60 melões e 250 bananas”... Quem compra isso tudo?

– Olha, não precisa ser uma situação real, é só pra ver se você sabe fazer conta…

– Mas quando eu vou precisar calcular tanto melão e banana? Só se meus pais abrirem alguma loja de suco…

– Você pode fazer conta com esses números numa outra situação… Eu peguei esses problemas de um livro antigo, Nina.

– Antigamente as pessoas compravam tanto assim?

– Não, não é isso. Talvez agora os livros coloquem situações mais realistas.

– E esse outro aqui: “Mariazinha leu 159 páginas em 1 semana. Quantas lerá em 5 semanas?” Isso não tem como saber. Eu não leio o mesmo número de páginas todo dia. Não dá pra…

– Nina, é só pra testar multiplicação. Eu sei que na vida real…

– “Na caixa de jogos de Betinho há 14 dominós, 12 damas e 6 bingos. Quantos jogos ele tem ao todo?” Por que ele tem tanto jogo repetido?! Se fossem quebra-cabeças, tudo bem, mas dominó, dama, bingo, é tudo igual!

O professor esfrega os olhos. O silêncio reina na sala, os ouvidos atentos.

– Tá bom, tá bom, essa prova está toda errada! – Ele olha ao redor e acrescenta: – Turma, podem parar a prova! Vou refazer as questões e marcar para outro dia.

Ele pega sua bolsa na mesa e sai da sala sem se dar ao trabalho de recolher as folhas.
Todos olham para a porta, espantados.
Todos menos Nina, que continua a fitar a prova e balança a cabeça.

– “Luluzinha tinha 23 lápis de cor, mas perdeu 12 numa semana.” Como ela conseguiu perder tanto lápis assim?? Nem eu que sou tão desastrada…

quinta-feira, maio 20, 2021

Panela de pressão

Era fim de expediente e, o melhor de tudo, uma sexta-feira. Os últimos funcionários estavam saindo, prontos para um happy hour: o grupinho de sempre – a panelinha que infernizava a empresa – e até o chefe direto deles.
Todos se enfiaram no elevador, a animação borbulhando, antecipando os drinques e petiscos.

– Camila, você que tá mais perto, aperta esse botão que a viagem é longa até lá embaixo! – gritou Walter.
O elevador começou sua descida suave, silenciosa, e o papo continuou solto. Até que houve um baque e o elevador parou abruptamente.

Não acredito que a gente vai ficar preso nessa joça em plena sexta! – resmungou Viviane.

Calma, é só apertar o botão de emergência – falou Rachel, e ela mesma fez o serviço.

Não se ouviu nenhum barulho. Ninguém sabia se era para soar um alarme ou algo do tipo.


“Boa noite.”

Houve um suspiro geral de alívio. Alguma funcionária da administração do prédio estava se comunicando com eles.

“Vocês devem estar se perguntando por que eu os reuni neste elevador.”

Como assim, garota? – vociferou Anderson, o chefe. – A gente quer sair desse elevador, ele parou!

“Imaginei mesmo que vocês não fossem reconhecer minha voz.”

Como a gente iria reconhecer a voz de uma empregada qualquer? – bradou Eric.

Peraí, gente, essa voz é familiar… – interveio Camila. – Parece a voz da Valéria.


“Muito bem, Camila. Pelo menos alguém ainda lembra de mim.”

Mas rapidinho você vai ser esquecida, querida – retrucou Rachel. – O que você está fazendo na portaria?


“Depois de todo o assédio que eu sofri por não me sujeitar ao grupinho de vocês, ainda me demitiram alegando justa causa”, disse a voz, parecendo conter a fúria. “Fui eu que parei o elevador.”

O que você quer, sua doida? – gritou Eric. – Vou gravar tudo…

“Ah, Eric, uma coisa simples… Vocês são seis, né? Mas o elevador só tem quatro cantos. Vocês apenas precisam escolher as duas pessoas que não vão sobreviver.”


Silêncio. Então Walter começou a gargalhar.

Maravilhoso, Valéria, adorei a encenação, agora pode soltar a gente.

“Se não se livrarem de duas pessoas, todos vão morrer”, retrucou a voz, com frieza. “O elevador vai cair, e vocês sabem que estão num andar bem alto.”

Todos se entreolharam. 


Claro que isso é blefe, gente – retomou Walter. – A Valéria é maluca, mas nem tanto.

De repente, ouviu-se um estalo alto e o elevador se inclinou um pouco, emitindo um rangido pavoroso. Todos berraram.


Walter, cala tua boca! – berrou Viviane. – Se falar mais besteira, te escolho pra ser eliminado.

Sua palhaça, vou…

Silêncio! – ordenou Anderson. – Algum celular pega aqui? O meu está sem sinal.

O celular nunca pegou no elevador nestes andares mais altos – respondeu Rachel.

Valéria, sei que você não tem coragem de derrubar o elevador, era só pra dar um susto – disse Eric. – Já conseguiu o que queria, o happy hour não vai rolar mais. Pode liberar a gente.

“Eu não estou brincando”, soou a voz de Valéria, numa entonação de dar calafrios.


De algum canto, veio um sibilo. Um gás acinzentado começou a tomar o ambiente, então de repente parou.

Ela p-pode soltar gás aqui dentro também – constatou Camila, trêmula. Após um silêncio estupefato, ela acrescentou: – Voto no Walter e no Eric.

Você enlouqueceu? – rebateu Eric. – O que vocês iriam fazer comigo?

Voto na Camila e no Anderson – interveio Walter.


Vocês só podem estar de brincadeira – replicou Rachel, dando uma risadinha para descontrair, porém soou mais como um guincho nervoso.

Eu voto no Walter e na Viviane – falou Anderson. – Walter, se a gente sair dessa, você está demitido.

– Prefiro ser demitida depois a morrer aqui: voto no Anderson e no Eric – continuou Viviane.

E eu prefiro não arriscar: voto na Camila e na Rachel – declarou Eric e ficou refletindo. – Aliás, a Rachel agora pode ser o voto de Minerva, mas também deixar algumas pessoas empatadas.


Todos encararam a garota.

Gente, vocês nem pensaram direito no que estão votando. Por favor…

Rachel, vota! – mandou o chefe.

E-eu voto… no Walter e no Anderson.


Todos pareciam calcular os votos. Os olhares se voltaram para os últimos votados.


De repente, Walter agarrou Rachel numa espécie de mata-leão e a puxou para um canto.

– Vocês não vão fazer nada contra mim! Se tentarem alguma coisa, ela vai pagar!


Viviane resolveu aproveitar o momento para tirar uma pequena tesoura da bolsa e investir contra Anderson. Chegou a fazer um corte, mas logo foi jogada contra a parede.


Ele já ia se apossar da tesoura, quando soou um estalo ainda mais alto que o anterior. Todos sentiram como se estivessem suspensos por um segundo, então o elevador começou a cair vertiginosamente.


Eles se chocavam uns contra os outros, nas paredes, no chão e até no teto, sem ter onde segurar direito, berrando de forma alucinada, suplicando, rezando.


Até que, abruptamente, o elevador desacelerou… até parar.

Os seis passageiros caíram embolados no chão, ensanguentados, doloridos, talvez com ossos quebrados. Eric parecia inconsciente.


A porta do elevador se abriu e eles estavam no térreo.

Camila conseguiu se colocar de pé, apoiada na parede, e espiou o saguão vazio. Os demais se entreolhavam, desconfiados uns dos outros, a traição estampada em seus rostos.


Anderson conseguiu acordar Eric e, um por um, eles foram saindo, sem querer companhia, dirigindo-se para algum hospital.

Eles nunca mais teriam um happy hour.

segunda-feira, abril 26, 2021

Arabezinho

Quando falei que queria um camelo, minha mãe estranhou, porque normalmente crianças da minha idade pedem urso ou cachorro de pelúcia. Mas ela acabou aceitando.  

Bom, meu salão de brinquedos na mansão está tão abarrotado, tantas coisas repetidas, que até fico surpreso de já não ter um camelinho. 

Eu finjo alimentá-lo duas vezes por dia. Pensei até em trazer grama seca lá do nosso jardim, mas sei que meu pai iria reclamar da sujeirada. 

Tentei várias vezes levar Arabezinho pra tomar banho comigo, só que minha mãe não deixa de jeito nenhum, porque seria muito ruim secar depois.

Apesar disso, eles deixam eu passear na picape. Eu gosto de ir na caçamba e as pessoas na propriedade ficam surpresas ao me ver lá com o camelinho. Parece que é muito ousado uma criança assim na caçamba, mas não acho nada de mais.

Depois que eu desço do carro, ando por um terreno cheio de areia com Arabezinho e é sempre muito divertido. Fico imaginando o que ele está pensando. Meu pai disse que um escritor, um tal de Préti-chéti, falou que os camelos são inteligentes e grandes matemáticos.

Só acho que o Arabezinho é meio solitário. Outro dia perguntei pra minha mãe se não dava pra encontrar um amigo pra ele.

- Meu amor, ninguém tem camelo como bicho de estimação. Sobe aqui na corcova dele e vamos passear um pouco.

Fiquei triste, mas talvez ele esteja mais interessado em números mesmo.

quarta-feira, março 10, 2021

Tempo perdido

Filipe nunca se sentiu tão solitário. Olha fixamente para a cova que começa a ser tapada com terra. Não tem mais lágrimas para derramar. O ventinho frio arrepia seus pelos e ele cruza os braços, quase abraçando o próprio corpo.
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– Também não acredito que ele se foi.
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Filipe sai de seu devaneio com um sobressalto. Vê que o tio está ao seu lado. Nunca foram muito próximos, mas ao menos é um rosto familiar e amigável naquela situação. Alguém com quem pode falar.
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– Pois é, um vazio aqui dentro, sabe?
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O tio faz que sim e os dois ficam em silêncio fitando a sepultura.
Para Filipe, o avô era um porto seguro. Depois de perder a mãe, sempre recorreu a ele, nos prantos e nos risos, de tal forma que passava praticamente metade do tempo na casa dele.
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Com a avó, não sabe por quê, a intimidade não é tão grande. Talvez seja sua personalidade mais fechada.
Ele a avista ao longe; parece contemplar a infinidade de túmulos, a finitude da vida. Não conseguiu falar com ela antes do enterro, então vai lá dar as condolências.
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– Aahh, Filipe, a gente nunca está preparado para este momento, né?... Eu amava… Eu amo muito seu avô. Ainda não sei como vai ser daqui para a frente.
– Sinto muito. Também estou abalado, meio desnorteado… Mas eu queria dizer que qualquer coisa que precisar é só me falar.
– Obrigada. Olha, eu preciso que você vá lá em casa amanhã de manhã. É que… Rodolfo deixou uma coisa para você.
– Vovô?! Mas como?
– Bom, ele já estava bem doente e me encarregou de entregar algumas coisas. Então eu queria te dar logo. É surpresa.
– Entendi. Tudo bem, amanhã eu passo lá.
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Os dois se abraçam e Filipe vai para casa, encucado.
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No dia seguinte, ele chega cedo, sabendo que a avó já vai estar de pé. Ela está na biblioteca da casa, lendo numa poltrona, e ergue os olhos ao ouvir os passos.
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– Caiu da cama, hein? Isso tudo é curiosidade? - Ela dá um sorrisinho melancólico. - Pois bem, vamos lá.
A avó vai até uma mesinha de canto e pega uma caixa.
– Aqui está.
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Filipe abre a caixa e vê um relógio dourado de bolso, conservado apesar de antigo, ainda um pouco reluzente. Franze a testa, sem entender por que o avô deixou aquilo para ele. Para que o neto desse importância ao tempo? Para que se lembrasse dos bons tempos passados juntos? Ou apenas uma memória afetiva?
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De baixo do relógio, desponta um papel. Filipe o desdobra para ler: "Dizem que o passado não volta. Mas… e se ele for o seu futuro?"
– Posso ler? - pergunta a avó. - Nossa, o que isso significa?
Filipe dá de ombros e fica admirando o relógio. Vai deixá-lo no seu aparador, embelezando a sala.
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– Achei linda essa, digamos, herança – comenta a avó. – Assim você tem seu avô mais perto.
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Matutando o bilhete misterioso, ele chega em casa. Talvez haja algo mais naquele relógio que justifique a mensagem e o fato de o avô ter lhe dado. Ele queria que Filipe vendesse a peça e ganhasse um bom dinheiro para o futuro?
Revira o relógio para descobrir como fazê-lo funcionar. Acha uma pequena fenda e abre uma tampa.
Mais um papel.
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"Em busca do tempo perdido, entre os livros você vai reencontrar seu sangue."
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Filipe fica hipnotizado pela mensagem, admirado por não entender nada.
O avô está se mostrando um grande charadista. Por que não foi mais claro?
Filipe fica ruminando os bilhetes e pensa que só um lugar pode lhe dar as respostas.

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Ele resolve voltar à casa da avó.
Toca a campainha, mas ninguém vem atender. Às vezes ela deixa a porta só encostada… Ele empurra e consegue entrar.
A casa está silenciosa. Não sabe se a avó saiu ou se está no andar de cima. Será que tirando uma soneca? Sem querer acordá-la, vai até a biblioteca, onde recebeu o relógio. A mensagem fala de livros, então é o lugar lógico para desvendar o enigma.
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Olha ao redor, as estantes repletas de volumes, tudo que o avô reuniu ao longo da vida. Filipe nunca foi um grande leitor, mas sempre admirou aquela coleção colorida e misteriosa. Vai demorar séculos até encontrar outra pista ou a solução naquelas obras.
Começa a retirar livros ao acaso, folheando, sacudindo, lembrando-se de filmes em que viu objetos guardados em compartimentos secretos ou presos às folhas. Talvez um livro com relógio, tempo, sangue no título…?
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Desiste daquela busca vintage e vai para uma mais moderna: saca o celular e procura no Google por palavras, expressões dos bilhetes, até que lá está, "Em busca do tempo perdido", tão óbvio, de um tal Proust. Só pode ser aquilo. O problema é que a obra tem sete volumes… Bom, precisa encontrar pelo menos um deles.
Filipe vai perscrutando as lombadas, ansioso por dar de cara com um dos títulos.
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Seus olhos já estão cansados, ele pensa em dar um tempo, quando surgem os volumes vermelhos. Pega uma escada no canto e sobe correndo, meio desajeitado.
Folheia os livros às pressas. Um, dois, três, quatro, cinco, seis… Deve ter se enganado. Então, do sétimo, O tempo redescoberto, cai um papel, lá do alto. Filipe não consegue segurá-lo e lá vai o papel flutuando. Ele desce afobado, sabendo que alguma hora as pernas vão cobrar o preço por aquela correria.
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A grande revelação…
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Filipe não acredita nos seus olhos: são apenas números!
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01:05
00:03
01:09
08:05
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Pareciam horas. Mas horas de quê?
Mais uma vez folheia o livro, mas agora prestando atenção no texto, em busca de uma pista. Aquela caça ao tesouro já o está esgotando.
Nada parece relacionado aos números. Por que o avô deixou um relógio com horas enigmáticas? Ele quer tanto entender, talvez assim sinta uma última conexão com o avô. A saudade dói.
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Um fiapo de ideia se intromete em sua cabeça: um relógio serve para marcar horas, não? Um mecanismo com segredo poderia se abrir se ele ajustasse o relógio naqueles horários, em sequência.
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Pega a peça sentindo um fervilhar de animação pelo corpo. Vamos lá: ponteiro menor no 1, ponteiro maior no traço de 5 minutos. Nada. OK, sem problema.
Meia-noite e três. Uma e nove. Oito e cinco.
Nada.
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Filipe baixa a cabeça. Não sabe o que fazer. Deposita o relógio numa prateleira e já vai se virar quando ouve o estalo alto de uma engrenagem.
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Os ponteiros estão girando enlouquecidamente e Filipe não consegue tirar os olhos do mostrador, hipnotizado. O mundo agora parece se resumir apenas ao relógio, ele perde de vista tudo ao seu redor. Então outro estalo alto soa e seu olhar deixa de ficar vidrado.
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Filipe pega o relógio, procurando um novo compartimento, um papel, qualquer coisa, mas nada mudou. É hora de desistir. Deve ser só uma brincadeira ou o avô não teve tempo de terminar o enigma, seja lá o que é aquilo.
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Quando se volta novamente, vê que as prateleiras agora têm diversos espaços vazios. A poltrona é de couro, não mais de tecido. Confuso, Filipe ouve barulho de passos e, não sabe por quê, resolve se esconder num canto entre duas estantes.
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A porta se escancara de supetão, abrindo caminho para uma voz irritada:
– Eu não vou contar, pai, você não vai me convencer!
Uma mulher entra pisando duro, seguida por um homem mais velho.
– Filha, não faça isso, depois você vai se arrepender…
– Duvido, o Marcos não vai nem se importar!
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Filipe assiste a tudo em transe. Vê a mulher se sentar encolhida na poltrona, como se estivesse se refugiando do homem, do mundo.
A mulher é extremamente parecida com a sua mãe, só que mais jovem. O homem se parece demais com o avô, também mais novo, agora agachado junto à poltrona.
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– Julieta, pode até ser que ele aja assim, mas você deve dar uma chance para ele, dar a notícia…
– Já estou cansada! Fui magoada demais. Não sou um ioiô que pode ser jogado para cá e para lá de qualquer jeito, quando dá na telha. Por mim chega!
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Filipe está boquiaberto. Julieta… Mas quem é Marcos?
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– Eu não vou desistir, ainda acho que isso está errado…
– Vai gastar muita saliva à toa. - Ela se levanta. - Agora me deixa em paz.
Julieta sai da biblioteca e deixa o pai sozinho, ou melhor, achando que está sozinho.
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Filipe observa o homem abatido. Não consegue entender como o relógio o levou para o passado, mas é óbvio que esse era o objetivo do avô, a versão do futuro da pessoa que está ali à sua frente.
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Rodolfo reflete por um instante, então pega um papel e uma caneta-tinteiro. Começa a escrever, hesitante, depois ganha ânimo. Ao fim, dobra o papel e passa os olhos pelas estantes. Retira um volume da prateleira e coloca lá dentro o papel. Abre um sorrisinho.
O avô olha em volta. Filipe se encolhe no canto. Parece que não foi rápido o suficiente, mas o avô não dá sinal de tê-lo visto e sai da biblioteca.
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Filipe espera um tempo, atento a qualquer barulho. Sai devagar do seu canto, os olhos fixos no volume misterioso. Será que tudo vai se evaporar quando encostar e ele vai acordar na cama?
O título é “Memórias póstumas de Brás Cubas”. Ele se lembra de ter lido no colégio. Filipe espera ao menos uma pista para voltar ao presente. Mas nada poderia prepará-lo para o que vê:
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"Querido Filipe,
Julieta já escolheu seu nome, mas infelizmente escolheu também seguir sozinha.
Espero que você não precise ler este bilhete, que a vida tome outro rumo, mas, caso seja necessário, aqui está para você fazer o que achar melhor.
Se sua mãe não mudar de ideia, vou lhe deixar um relógio para que você saiba a verdade.
Seu pai é Marcos Faria Lima, talvez não mereça seu amor, mas você merece conhecê-lo se quiser.
Não o procure no passado, para não gerar o caos no tempo. Volte ao seu presente.
Basta colocar cada dígito da data de onde você veio como hora ou minuto no relógio. Muito cuidado para não viajar para a época errada.
Um beijo já saudoso,

Vovô"
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Filipe reflete um instante. Então ele está em 15/03/1985. Uau! Bom, naturalmente que faz sentido, ele nasceu… ou melhor, vai nascer em dezembro deste ano.
O garoto está atordoado. Sua vontade é correr atrás do pai e tentar resolver a situação, mas ele falaria que é o filho do futuro? Ou deixaria um bilhete avisando que Julieta está grávida…
Não, não, o avô falou para ele não interferir no passado. Sabe-se lá o que poderia acontecer. Uma cadeia de eventos, uma bola de neve que talvez não tenha boas consequências.
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Contendo-se para não sair da biblioteca, Filipe pega o relógio e começa o procedimento:
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00:02
00:02
02:00
02:00
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Uma bela data, palíndroma.
Soa um estalo alto e Filipe tem a sensação familiar hipnótica.
Então lá estão a imensidão de livros, a poltrona de tecido. Ele não sabe nem por onde começar.
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– Filipe? O que você está fazendo aqui?
Ele se vira e vê a avó à porta.
– Oi… Desculpa, a porta só estava encostada e eu entrei direto. É que encontrei outro bilhete do vovô dentro do relógio.
– Outro? E deu para entender desta vez?
– Na verdade não, mas achei outra mensagem num livro aqui… – Ele desvia o olhar, sem saber como continuar.
– Meu Deus, o Rodolfo criou uma caça ao tesouro? Por que tanto mistério? E afinal, o que era?
– É… Meu pai.
.
A avó fecha a cara.
.
– Como assim? O que ele falou sobre o Marcos?
– Você conhece meu pai?!
– Claro que sim, ele namorou por um bom tempo com a Julieta…
– E por que ninguém nunca me falou dele? Só disseram que ele tinha sumido, me abandonado…
– Porque sua mãe não deixou. Porque o Rodolfo prometeu a ela que não contaria nada. Ela estava magoada demais com as atitudes dele, nem sei bem o quê. Sempre gostei do Marcos… mas também jurei ao Rodolfo que não contaria, mesmo depois da morte dela… e dele.
– Isso é um absurdo! Como vocês podem ter escondido isso de mim? Nunca pude conhecer meu pai.
– Também acho um absurdo… Na verdade, eu estava pensando em te contar, agora que eles não estão mais aqui.
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Filipe solta um muxoxo cético. Foi enganado a vida inteira. Agora só há uma coisa a fazer.
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– Bom, estou indo lá. Vou procurar meu pai.
Filipe passa pela avó e se dirige até a porta da biblioteca.
– Não é necessário.
– Como assim? Ele m-mo…
– Não, não. Eu continuo acompanhando-o a distância, pela internet. Não cheguei a adicioná-lo em nenhuma rede social, mas tenho como entrar em contato. Você quer?
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Filipe sente um frio na barriga.
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– Quero.

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Deitado na cama, Filipe encara o teto. Ele vai conhecer o pai. Então o nervosismo dá lugar à raiva por terem escondido tudo dele, principalmente raiva da mãe. Sempre confiou tanto nela… Mas talvez ela fosse lhe contar. Talvez tivesse deixado para falar no momento propício, só que o infarto a pegou de surpresa. Ele prefere pensar que foi isso.
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Levanta-se para se olhar no espelho. Filipe é parecido com a mãe, mas algumas características são diferentes. Começa a imaginar o pai. O que será que ele fez de tão ruim para a mãe apagá-lo da vida dela? Da vida deles!
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Sem ter o que fazer, ele olha para o livro na sua escrivaninha. Resolveu pegar emprestado da biblioteca do avô, ficou curioso com o título: "O mistério dos sete relógios". Assim, pode passar um pouco de tempo.

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– Pai, é você?
Filipe vê um homem alto parado na biblioteca, de costas para ele. Aperta o passo, e então o homem se vira, o rosto desfigurado. De repente, os dois estão no cemitério junto ao túmulo de Julieta.
– Achou mesmo que ia me encontrar?
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Filipe dá um berro e acorda. Ofegante, percebe que o celular está tocando.
– Alô?
– Bom dia, Filipe! Tenho boas notícias: o Marcos me respondeu.
O frio na barriga retorna com toda a força.
– Você contou que ele tem um filho…?
– Claro que não! Isso não se conta por telefone anos depois. Só falei que queria reencontrá-lo. Marcamos para amanhã à tarde.
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Filipe fica mudo. Sem reação.
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– Alô? Você ainda está aí?
– Desculpa, eu não soube o que responder. P-por mim tudo bem.
– Ótimo! Vai dar tudo certo, não se preocupe.
Fácil falar… Filipe passa o dia totalmente aéreo, só pensa no encontro. E se o pai o rejeitar? E se o pai for um babaca? E se o pai não gostar dele?...
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Resolve que o melhor que pode fazer é jogar videogame e se distrair. Já basta a morte do avô, agora essa reviravolta toda…
Torce para que não tenha pesadelos de novo.

*************

Filipe fica em silêncio no caminho até o parque. Tem medo de fazer perguntas e criar expectativas. Prefere esperar para ver ao vivo.
Ele se arrumou bem, mas isso não impede que se sinta desajeitado.
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A avó lhe pede que aguarde à sombra de uma árvore e vai se sentar num banco próximo. Os minutos passam, mas nada. O pai deve ter desconfiado de algo e resolveu não aparecer.
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Filipe já está quase indo descansar no banco quando surge um homem. Só pode ser ele, algo lhe diz isso, algo em sua aparência, seu andar. Ele abraça sua avó e se senta para conversar. As expressões se tornam mais sérias à medida que o diálogo se alonga, até que o homem faz uma cara de espanto, se levantando de supetão. Ele vai fugir.
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A avó se vira para Filipe e faz um sinal. Apesar da urgência, ele se aproxima devagar. Marcos (esse é o nome dele, certo?) o observa com os olhos vidrados. Os dois ficam parados frente a frente, em silêncio.
– Oi… p-pai.
Marcos o toma num abraço e Filipe finalmente consegue respirar, mas depois de um tempo ele se sente desconfortável e se desvencilha. Eles se sentam. A avó não está mais à vista.
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– Então… – começa Marcos. – Você deve ter muitas perguntas.
– O que você fez para magoar tanto minha mãe?
– Imaginei que essa fosse ser a primeira mesmo. Nosso namoro foi de idas e vindas. Eu a traí, desprezei seu amor… Talvez a gota d’água tenha sido quando falei que queria um relacionamento aberto. Eu era muito inconsequente, não queria compromisso nenhum, e ela me apagou da vida.
– Você nunca tentou se reaproximar?
– Ah, eu tentei, disse que tinha mudado de ideia, mas não era fácil convencer Julieta. Até que desisti. Mas eu nunca teria feito isso se soubesse da gravidez. Quantos anos perdemos sem nos conhecer…
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Filipe assente.
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– Anos que não voltam mais… – Uma lembrança lhe vem. – Hum, você gostava do meu avô?
– Seu Rodolfo era simpático, sempre me tratou bem. Pena que não pude ter mais contato.
– Ele tentou convencer minha mãe a te contar sobre a gravidez.
– Ah, é, como você sabe?
– Ahn… Minha avó me contou.
– Uma pena que ela não tenha dado ouvidos. Sem ela não vai ser a mesma coisa, mas agora podemos construir uma nova vida em homenagem a ela.
– Sim, sim… – responde Filipe, só que sua cabeça está em outro lugar.
– Bom, é melhor a gente marcar outro dia para conversar melhor. Que tal amanhã de tarde? Senão é muito para um dia só, né?
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Filipe concorda e os dois se abraçam. Então sua avó aparece e ele vai embora junto.
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– Você parece tão pensativo… – comenta ela.
– Tantas revelações… Deixam o cérebro bugado.
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Quando chega em casa, Filipe enfia a mão no bolso da calça e retira o relógio do avô. Durante todo o encontro, ele sentiu fortemente sua presença, parecia queimar a pele. Não sabe se é um sinal do objeto fantástico ou apenas sua ânsia.
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Larga o relógio abrasador na escrivaninha e fica encarando seu mostrador. Quantos anos perdemos sem nos conhecer… E quanto tempo sem os três juntos, sua mãe seria mais feliz…
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Suas mãos começam a mexer nos ponteiros aleatoriamente. Elas ganham vida própria. Talvez não seja tão aleatório. Ele se perde em pensamentos, o olhar vidrado, parece que agora o mundo se resume ao relógio.
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Então ele volta a si e se vira para o quarto. Está tudo diferente, outra pessoa mora ali. Sinto muito, vovô, acho que eu prefiro arriscar.
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Ele espia o corredor e vai em busca da mãe.

sexta-feira, fevereiro 26, 2021

Intervenções

– Bom dia. Aqui é o Leitura Crítica?
– Sim, em que posso ajudar?
– Estou procurando Harry Potter e a Pedra Filosofal.
– Tenho um exemplar aqui com anotações de uma criança maravilhada ao ler pela primeira vez.
– Nossa, você leu minha mente! Minha ideia era justamente relembrar como foi essa experiência, porque atualmente está difícil resgatar o sentimento só com a edição que tenho lá em casa…
– Então a senhora vai adorar a letra fofa da Lilian. Bela aquisição!

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– Boa tarde. Posso ver seus exemplares de Reinações de Narizinho?
– Claro, fique à vontade, estão ali.
– Obrigada. Deixa eu ver… esse não… também não… Achei!
– Que bom, senhorita. Se não se incomoda de dizer, por que escolheu esse? Sou curioso, é bom para conhecer os clientes.
– Esses comentários aqui são meus. Na época eu era criança, fiquei encantada com o universo fantástico do Lobato. Depois minha mãe vendeu o livro. Mas agora sei como ele foi preconceituoso e quero comprar esse exemplar de volta. Tirar de circulação, sabe?
– Tudo bem, ninguém melhor que a senhorita para decidir o que fazer.

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– Oi, por acaso vocês têm o livro… peraí, deixa eu ver aqui… Dom Casmurro?
– Sim, sim. Veja se este exemplar agrada ao senhor.
– Ele está todo sublinhado e escrito nas margens!
– Ahn, senhor, a proposta do sebo é vender apenas livros com anotações, texto grifado e o que mais indicar a interferência de um leitor. Quanto mais intervenções, mais precioso consideramos. As pessoas vêm aqui atrás disso, para interagir com leitores do passado.
– Entendi… Então todos os livros estão rabiscados.
– Isso. Mas existem duas opções: esse exemplar que está com o senhor defende que Capitu não traiu Bentinho, e o outro já acredita na traição.
– Olha, acho que não vão gostar de nenhum dos dois lá na escola. Desculpe, mas não vou levar.

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– Bom dia, vcs teriam Senhora?
– Ah, sim, do José de Alencar. É para a escola?
– Na verdade não, é que eu li esse livro há muito tempo…
– Nós temos um exemplar todo rabiscado com comentários raivosos de um estudante que não sabia por que estava lendo isso e achou um porre.
– Perfeito! Eu queria uma edição exatamente assim. Para matar a saudade da irritação.
– Eu entendo. Vou embrulhar, então.

domingo, julho 26, 2020

Prova de vida

– Boa tarde. Gostaria de fazer a minha prova de vida.

– Qual é o nome do senhor?

– Malvino Coelho Moura.

– OK, só um instante… Temos um problema: o senhor não fez a prova de vida ano passado.

– Sim, é verdade, eu me esqueci. Sabe como é, a memória vai piorando com a idade... Queria regularizar agora meu benefício.

– Não será possível, senhor.

– Mas como não? Eu li na internet que basta se apresentar…

– Como podemos ter certeza de que o senhor estava vivo ano passado?

– Ora bolas, se estou vivo agora, como poderia não estar no outro ano?!

– Ah, o senhor não imagina os relatos reais de que eu soube. Pessoas consideradas mortas que voltaram à vida por um milagre…

– Mas elas não estavam mortas de verdade, né? Isso seria impossível.

– Estavam, sim. O senhor precisava ver a aparência decrépita de uma delas. Falou que nem morta ia perder a aposentadoria.

– Isso é força de expressão…

– Claro que recusei. Pior o outro que morreu de vergonha quando descobriu que tinha passado do prazo…

– A senhorita só pode estar brincando com a minha cara!

– Só queria testar seu senso de humor. O caso que aconteceu de verdade foi o de um cara que mostrou fotos do próprio enterro. Ele apresentou o atestado. Não sei como ele conseguiu ressuscitar.

– Meu Deus! Mas isso acontecia muito antigamente, a pessoa era dada como morta…

– Não, senhor, ele tinha morrido mesmo. E apareceu vivinho aqui na minha frente.

– Olha, não tenho todo o tempo do mundo. Poderia ver meu processo aí?

– O senhor poderia me dar sua identidade?

– Claro, aqui está… Ué, onde ela foi parar?

– O senhor saiu sem nada no bolso?

– Eu estava com minha carteira, mas não acho nada agora…

– Humm, o senhor poderia falar com aquele rapaz ali ao lado? Ele deve resolver a situação. Depois volte aqui.

– Claro, já volto… 


A moça aguardou pacientemente, então o homem retornou.


– Esse cara é um mal-educado! Eu o chamei, fiz uma pergunta mais de uma vez, mas não, ele parece ocupado demais para dar atenção a um idoso.

– Senhor, sinto dizer, mas não será possível completar a prova de vida.

– Isso é um absurdo! Onde está o gerente? Vou fazer uma denúncia…

– Posso até chamá-lo, mas não vai adiantar: o senhor está morto, mas ainda não se deu conta.

– Sua lunática…

– Tente conversar com mais alguém na agência. Veja se não estou com a razão.


O homem se afastou xingando, preparado para reclamar com outro funcionário (ou pelo menos tentar).


Joelma suspirou fundo. Vida de bancária médium não era nada fácil.

sexta-feira, junho 12, 2020

Feriadão

Uma semana inteirinha em casa. Para Thadeu, isso não ia fazer diferença, porque ele já estava trabalhando em home office e mal botava o pé para fora, mas muitas pessoas ainda precisavam sair para o serviço.

Agora poderiam ficar em casa. Bom, pelo menos era o que ele esperava. Não duvidava nada que gente sem noção iria querer aproveitar os feriados antecipados para passear, viajar… Que fossem impedidos e levassem uma bela multa.


Espreguiçou-se e pensou que pelo menos dava para curtir sem trabalhar, vendo séries, jogando… Ligou a TV e se deparou com uma espécie de passeata. Passeata em meio à pandemia? Todos de verde e amarelo… Demorou a entender a repórter. Ela falava que as pessoas estavam celebrando o Sete de Setembro.

Elas tinham enlouquecido. Uma coisa era adiantar o dia sem trabalho, outra era fingir que realmente era o dia. Não podiam esperar a disseminação do vírus cair e comemorar no dia correto? Patriotas…

As manifestações não foram poucas e Thadeu passou o dia assistindo em transe. O mundo estava perdido. Queria entender a mente daquelas pessoas. Quer dizer, era melhor não.


****

No dia seguinte, acordou e foi logo ligar a TV, esperando ver mais passeatas. Mas elas pareciam ter parado. O canal estava passando uma maratona de desenhos e Thadeu ficou um bom tempo matando as saudades de alguns antigos.

Resolveu ligar para a irmã; há muito tempo não falava com ela. 


– Maninha! Como está tudo aí?

– A gente está se adaptando, né? Voltar à vida normal é bem estranho.

– Você chama isso de vida normal?

– Ah, Thadeu, é claro que não é o normal de antes, mas já está bem melhor…

Ele soltou um muxoxo.

– Bom, como estão os catarrentos?

– Você sabe que não gosto de você chamá-los assim… Ah, estão aqui se divertindo, ganharam presente hoje.

– Decidiu fazer uma boa ação?

– Até parece… É que no Dia das Crianças eu sempre dou.

– Mas hoje é 9 de junho, você podia ter esperado quatro meses, né?

– Tenho que ir lá, o Mateus está berrando! Beijos.


Thadeu ficou olhando para o nada, segurando o fone. Marisa, tão sovina, comprando presente antecipado… O mundo dava voltas.

Thadeu estava entediado. Ficar sozinho preso em casa era a pior coisa. Decidiu que o melhor a fazer era ver mais desenhos animados; pelo menos não havia ninguém ali para julgá-lo.

Já na hora de dormir, ele pensou com expectativa: “Amanhã é o grande dia!”


****

Acordou pulando da cama com o despertador. Há 30 anos ele estava chorando numa maternidade, vendo o mundo pela primeira vez. Aquela era a hora exata da sua chegada.

Foi saltitando até a cozinha preparar um café da manhã caprichado. Só lamentava não poder sair com os amigos para comemorar, mas pelo menos ia receber muitas mensagens, falar com várias pessoas pelo telefone.


Como tinha saído das redes sociais e tirado o WhatsApp, acabava ficando dependente de quem realmente sabia seu aniversário. Culpa sua também. Bom, ainda estava cedo, ele tinha se apressado para nascer.

Deu uma passada de olhos nas notícias, não gostava muito de ver porque o deprimiam. Muitos tributos aos mortos, pessoas que se arriscavam indo a cemitérios. Não aguentou e saiu do site. Não iria ficar triste no próprio aniversário.


A manhã foi passando e nenhuma mensagem ou telefonema. Seria possível que, com o feriadão, todo mundo estivesse tão desligado?

Resolveu ligar para o André. Ia pegar no pé daquele mala.


– Fala, mandrião!

– E aí, biltre, o que você manda? Aproveitando a folga?

– Não está esquecendo de nada?

– Humm… Putz, a festa de Halloween, né?

– Do que você está falando?

– Ah, também esqueceu! A festa na casa da Mariana. Foi sábado.

– Em plena pandemia?!

– Ih, cara, você não está bem, não… Já está podendo ter festa, só não pode ficar lotado. Mas conta, o que foi que eu esqueci?

– Meu aniversário, claro. Deixa de fingir.

– Você não faz em junho?

– Então, cara…


Thadeu congelou, fitando a TV. Na chamada estava escrito "2 de novembro". Finados.

– Nós estamos em novembro?

– Eu sei que o ano passou rápido depois que a quarentena acabou, mas você está desnorteado.

Thadeu ficou em transe olhando para a televisão.

– Ei, alguém aí? – perguntou André.

– Como você está? Saindo normalmente?

– Humm, sim, aproveitando o “novo normal”, como as pessoas gostam de falar. Claro que a gente tem que ficar atento, pode ser que do nada voltem com a quarentena, mas está tranquilo, né? Vamos ver quando chega a vacina.

– Ah, cara, que bom saber. A partir de setembro já dava para ter uma esperança.

– É, mais ou menos por aí, tem 2 meses que respiramos muito mais aliviados.

– Foi bom falar contigo. Algum dia a gente marca uma cervejinha. Abraços!


Thadeu desligou. Algum dia longínquo… Ou será que o tempo continuaria naquela progressão louca? Ele torcia para que, do nada, semana que vem já fosse 2021 e o pesadelo tivesse acabado.

Apesar da esperança que o amigo lhe dera, não tinha coragem de sair. E se aquele espaço-tempo louco só tinha conexão com seu apartamento? Poderia sair e ainda encontrar um mundo em plena pandemia.


O jeito era ficar em casa e não ganhar nenhum parabéns. Será que poderia contar 2020 como ano de vida ou em 2021 ainda teria a mesma idade de 2019?

Mais uma vez passou o restante do dia grudado na TV, agora curioso para ver o futuro. Todos os lugares funcionando sem necessidade de preocupação, pessoas trabalhando, se abraçando, passeando… Pelo menos era bom ver que as coisas iam melhorar, claro que com toda a atenção.


****

Mais um dia. Thadeu não sabia mais o que esperar. Que surpresas lhe aguardavam?

Para se distanciar um pouco da TV, entrou num portal de notícias para descobrir como andava o futuro. A surpresa da vez é que ele tinha voltado a junho. Confuso, percorreu as manchetes, até que uma deu um estalo nele: “Tapetes de Corpus Christi enfeitam a cidade”.

Hoje não era um feriado adiantado, já fazia parte da semana e fora emendado com os outros.

Estava de volta à realidade caótica.


Thadeu se recostou no sofá, desanimado. Bom, voltaria à sua rotina de séries e videogame, e restava esperar que o dia seguinte mantivesse a progressão.

15 de novembro não tinha nada de especial, mas ele poderia checar a data no celular e na TV. Antes já tinha achado que estava no lucro, porque em novembro o feriado cairia num domingo, não numa sexta, mas nem poderia imaginar como seria preciosa aquela antecipação.

Depois da frustração, ele estava decidido: iria sair de casa para ver o mundo ao vivo.


****

Como será que estaria o futuro? Thadeu estava ansioso para testemunhar. 

Por via das dúvidas, pegou vários frascos de álcool em gel e máscaras e luvas sobressalentes. Um face shield também caía bem.

Todo paramentado, ele pegou o elevador. Já na rua, viu poucas pessoas de máscara. Parecia que alguns lhe lançavam olhares de estranhamento. Ele sempre tinha sido neurótico, exagerado, ninguém saía tão cheio de coisas assim.


Tinha a impressão de que estava vivendo um dia mais ou menos normal pré-pandemia. Mas uma quantidade considerável de pessoas na rua não significava nada para aquele povo sem noção. Precisava confirmar ainda.


Foi andando pela rua principal até o lugar que iria lhe dar a certeza. E lá estava: a universidade repleta de alunos. Os olhos de Thadeu marejaram. Ele ficou parado, embevecido, por um bom tempo, até levar um esbarrão de um estudante.

Caminhou mais um pouco e viu uma escola e uma creche funcionando. A essa altura, vendo como estavam as pessoas ao redor, tirou o face shield e até as luvas, mas não teve coragem de ficar sem máscara.


A primeira coisa que decidiu fazer foi visitar seus pais. Deu um abraço apertado neles, beijos, e passou um tempão conversando, matando as saudades. Infelizmente não poderia ficar lá o dia todo, então foi correndo visitar Marisa e Michael. Os catarrentos estava bem e, para variar, Mateus berrava. Ele perguntou pelo presente de Dia das Crianças e a irmã exibiu uma expressão interrogativa: por que tinha se lembrado disso do nada? Mal sabia ela…


Já de noite, ligou para André e marcou um chopp. Resolveu fazer hora na praça e no shopping para admirar o fluxo de pessoas.

Na hora combinada, começou os trabalhos no barzinho, mas logo apareceu o amigo.

– Há quanto tempo, camarada! – exclamou Thadeu.

– Também não exagera, a gente se viu semana passada.

Entre os dois feriados… Fazia sentido.


Conversaram, gargalharam, falaram mil besteiras. O tempo passou voando. De repente, Thadeu viu que eram 23h30. Ele parou no meio de uma frase, sem saber o que fazer. Quando passasse de meia-noite, o que iria acontecer: continuaria ali ou iria parar em casa no dia 13 de junho? Seria melhor ir para casa ou aguardar?

Bom, talvez desse no mesmo, então preferiu ficar e aproveitar pelo menos meia hora com o amigo.

– Ei, cara, tá tudo bem?

– Hum, sim, sim, só me lembrei de uma coisa, nada de mais.


Os minutos foram passando e o nervosismo de Thadeu só aumentava. Com o coração acelerado e a bebida subindo à cabeça, ele decidiu ir ao banheiro. Sentindo-se um pouco mal, meio zonzo, ficou sentado, tentando se recompor. Fechou os olhos, inspirou e expirou fundo, inspirou e expirou, inspirou e expirou… Parecia estar melhor.


Quando abriu os olhos, viu-se no banheiro de casa. Não era possível. Procurou o celular, até encontrá-lo no quarto.

00h01 do dia 13 de junho.


Thadeu desabou na cama, arrasado. Sua degustação do futuro tinha chegado ao fim. Agora lhe restava esperar pelo menos três meses…

Mas saber que as coisas iam melhorar já era um consolo. E faria campanha para que as pessoas respeitassem o isolamento e aquilo tudo terminasse o quanto antes. E talvez voltasse às redes sociais para interagir mais com a família e os amigos.Televisão demais não estava fazendo bem a ele. Mas um pouco de videogame não poderia atrapalhar…


Foi dormir e sonhou com o que estava por vir.