sábado, novembro 24, 2018

Desfalecendo

Sempre achei engraçada essa palavra, "desfalecer". Como "des" pode significar oposição, desmaiar seria o contrário de morrer. Você perde os sentidos... Acho que está mais perto do falecimento que no lado oposto, né? "Des" também pode ser reforço, intensidade, mas ninguém "morre muito".

Impressionante como eu gosto de divagar. Tudo isso para relembrar as vezes em que desmaiei. Foram só duas, mas memoráveis.

Na primeira ocasião, eu estava participando de um evento católico. O dia estava muito quente e, por causa de um atraso na programação, o lanche teve que ser pulado. Chegou a hora da missa, diversas cadeiras de plásticos dispostas numa quadra esportiva em frente a uma mesa que servia de altar. Durante a cerimônia, em meio ao calor e à fome, comecei a ficar tonto e me inclinei, me apoiando na cadeira da frente.
Seguindo uma lógica absurda, pensei que não iria desmaiar porque isso nunca tinha acontecido comigo. Faz todo o sentido! Não falei nada com a Carla, que estava ao meu lado. A visão começou a escurecer e eu apaguei.
Acordei deitado no chão da quadra, as cadeiras em volta afastadas para me dar espaço, as pessoas me olhando preocupadas, isso tudo durante a missa. Bebi água, fiquei sentado, comunguei, sendo o centro das atenções como gosto muito (só que não).

A segunda vez foi ainda melhor. Há 10 anos eu estagiava numa empresa na Usina, na Tijuca. Era meu primeiro estágio e eu ainda não estava muito acostumado em conciliar a rotina com a faculdade, era meio puxado. Passei um bom tempo sem comer direito, mas não me preocupei porque já iria para casa, na Saens Peña. Peguei o ônibus de integração do metrô no terminal. E depois não lembro de mais nada.
Quando acordei, estava recostado num banco nos fundos do ônibus, que já tinha estacionado no ponto final na praça. Segundo o cobrador ou motorista, eu tinha passado a catraca e então desabei. No meio do corredor.
Por causa dessa queda deselegante, bati com o ombro e até hoje tenho uma pequena lesão. Na época até precisei fazer fisioterapia, porque a articulação ficou frágil e o osso saía e voltava para o lugar. Era uma dor insuportável.
Mas o melhor dessa história é que o cobrador ligou para a minha mãe pelo meu celular (provavelmente eu não o bloqueava) e ela achou que fosse trote, daqueles bandidos. "Tô com seu filho desmaiado aqui no ônibus, preciso que a senhora venha buscá-lo."
Realmente, eu também pensaria que era trote.

sábado, novembro 17, 2018

Provação

Chegou o dia da prova. Luiza estava muito nervosa. Tinha estudado tudo do conteúdo programático, achava que iria se dar bem, mas não tinha jeito: sempre ficava nervosa antes de um concurso.
Acordara bem cedo, se aprontou, arrumou seu material, tomou o café da manhã. Iria sair adiantada para evitar qualquer contratempo.

Quando chegou ao local de prova, um funcionário veio falar com ela:
– Bom dia, senhorita. Implantamos um novo sistema e queria lhe dar as orientações. Pode esperar sentada num banco e confira sua sala num dos monitores espalhados pelo campus. Boa sorte.

Isso era meio doido. Havia tantas pessoas ali, iria demorar um bocado até aparecer o nome dela. Ansiosa, ela nem se sentou. Ficou esperando em pé, vendo os candidatos passarem aos poucos. Nem todos tinham salas definidas. Quando surgiu seu nome, enfim, estava escrito "Remanejamento".
Desesperada, ela foi atrás do funcionário que a atendera.

– Sinto muito, mas a senhorita foi remanejada para outro local de prova.
– O quê?! Mas como isso é possível?
– Provavelmente houve alguma confusão. Deixe-me consultar o novo local...
Ele mexeu num tablet e informou:
– Colégio São Silvestre.
– Mas fica longe!
– Infelizmente não posso ajudar mais.

Luiza não ia contar com a sorte: pediu logo um carro pelo aplicativo e pulou dentro. Mal o veículo estacionou em frente ao colégio, ela saltou e correu para o interior.
Mais monitores. Pelo amor de Deus. Inquieta, esperou seu nome aparecer. Ufa, era ali mesmo, sala 204.

Antes dos elevadores, alguns fiscais estavam fazendo alguma espécie de vistoria. 
– Senhorita, pode me entregar sua bolsa?
Sem ter o que fazer, Luiza entregou. O homem depositou-a numa balança e soou um apito.
– A bolsa está com excesso de peso.
– Mas o que isso interfere na prova?
– São normas da organizadora, não tolerar nada acima desse peso. A não ser que a senhorita tenha pagado uma taxa de excedente previamente. Estava no edital. A senhorita pode se desfazer de algumas coisas para chegar ao peso ou pagar pelo excesso.

Aquilo não podia estar acontecendo. Ela deu uma olhada dentro da bolsa, viu se era possível jogar algo fora. Como a diferença era pequena, deveriam ser poucos pertences. Tudo para o lixo.
O fiscal pesou de novo. Ela prendeu a respiração. Agora estava tudo certo. Furiosa, pegou o elevador. Finalmente encontrou sua sala.

A moça conferiu seu cartão e franziu a testa.
– Senhorita, a sala já está lotada. Acho que alocaram candidatos demais aqui sem poder.
– E o que eu tenho com isso??
– Não há cadeiras sobressalentes. Vejamos... – Ela consultou um tablet. – Há lugar disponível no Instituto Odisseia, aqui mesmo na rua, mais para o fim. – A moça consultou o relógio. – Mas vai precisar se apressar.

Atordoada, Luiza segurou a bolsa junto ao corpo e saiu em disparada pelas escadas. Ela sabia onde era o instituto, não tão perto assim. Não se importava com as pessoas que passavam, esbarrava em algumas, só olhava as fachadas. As pernas começaram a arder, sentia pontadas nas costelas.

O prédio já estava à vista. Ela entrou desabalada, então lembrou que precisava descobrir sua sala. Agarrou um fiscal pela camisa e exigiu que ele consultasse logo no tablet e parasse com aquela frescura de monitor.
Assustado, o homem informou e ela correu para a vistoria. Jogou a bolsa na balança, pegou-a de volta e subiu as escadas.

Sem fôlego, alcançou a sala. A funcionária arregalou os olhos para ela.
Luiza olhou para a sala. Estava vazia.

– Pessoal, chegou a primeira aprovada! – berrou a mulher para o corredor e começou a tocar uma sineta.
Agora foi a vez de Luiza arregalar os olhos. Sem reação, ela foi abraçada pela fiscal.

E assim Luiza passou na seleção da ANAC.

segunda-feira, novembro 12, 2018

A herança

– Boa tarde. Quem fala é a srta. Júlia Pitanga?
– Sim, é ela. Quem gostaria?
– Meu nome é Everardo Nascimento. Sou advogado do seu tio Afonso Bandeira. Lamento informar, mas ele faleceu recentemente.
– Nossa, não tinha notícias dele há algum tempo. É uma pena...
– Sim, sei que a senhorita não tinha tanto contato, mas é a parente mais próxima, por isso foi incluída no testamento.
Júlia não soube o que responder. Ela ia receber uma herança?
– Quando poderíamos nos encontrar para uma conversa? – perguntou o advogado.
Os dois combinaram o encontro para o dia seguinte e Júlia desligou. Ela estava muito ansiosa.

Ao chegar ao escritório de Everardo, se sentou e aguardou, na expectativa.
– O sr. Afonso deixou como bem a casa onde morava, simples, mas bem cuidada – começou o advogado. – E... tem outra coisa, um tanto quanto exótica. Está lá na casa. Gostaria que a senhorita fosse comigo para que eu mostrasse.
Com a pulga atrás da orelha, Júlia aceitou. Foram no carro dele.

A casa até que ficava bem localizada e pareceu simpática. Deram uma olhada nos cômodos e Júlia logo se imaginou morando ali, refazendo sua vida. Mas restava uma dúvida:
– Onde está a tal coisa exótica?
– Ah, sim, vamos para o quintal dos fundos.
Everardo abriu a porta e Júlia saiu. Foi então que viu aquela enormidade.
– É uma tartaruga?
– Na verdade, um jabuti, pois vive na terra. É uma fêmea e se chama Talita. Já tem 90 anos, por isso é tão grande: tem uns 70 centímetros.
– Vou ter que cuidar dela? Não seria melhor mandar para um zoológico, alguém que entenda de jabuti?
– Seu tio deixou claro no testamento que a senhorita só poderia ficar com a casa se cuidasse da jabota.
– Tudo bem, é o jeito...

Nos outros dias ela veria toda a papelada, burocracia. Agora precisava pesquisar o que aquele animal comia. Foi até o mercado perto da casa e comprou os alimentos. Colocou tudo numa bacia e a depositou perto do bicho, junto com uma tigela de água. Talita esticou o pescoço e começou a devorar a refeição com eficiência. Não deixou nada. Ela ia dar trabalho.

Júlia trancou a casa e foi buscar alguns pertences pessoais. Queria passar aquela noite na nova residência, depois falaria com o proprietário que iria sair do apartamento alugado.
Quando voltou para a casa, Talita dormia profundamente, ainda no mesmo lugar. Transmitia uma serenidade... Deu vontade até de dormir. E foi o que Júlia fez.

No dia seguinte, ela acordou no susto. Nossa, já estava muito tarde. Saiu correndo para começar a resolver as questões legais e a encaixotar suas coisas.
Ao retornar, no fim da tarde, se assustou com um movimento na cozinha. Com o coração aos pulos, viu que era Talita, entrando vagarosamente. A jabota passou o focinho pelo chão, como se pedisse algo.
Coitada, tinha ficado o dia inteiro sem comida! Pegou o que tinha sobrado das compras e estendeu para a bichinha. Ela foi comendo direto da mão de Júlia, às vezes quase arrancando-lhe os dedos.
Quando acabaram os legumes, verduras e frutas, as duas ficaram se olhando.

– Você deve estar triste com a morte do tio Afonso, né? Nem dei bola para a sua perda. Desculpa... – Jília esticou a mão, hesitante, e acariciou a cabeça dela. – Eu também acabei de perder meu namorado. Ele não morreu, só me deixou. Mas é tão doloroso, moramos juntos há tanto tempo... – Ela enxugou as lágrimas que caíam. – Eu precisava deixar aquele apartamento, só me trazia lembranças ruins. Esta casa veio na hora certa.

As duas ficaram lado a lado um tempão, em silêncio, até que Talita começou a andar, devagar, e sumiu no quintal.

A partir do dia seguinte, Júlia criou uma rotina de alimentar Talita e conversar com ela. A papelada se resolveu, ela entregou o apartamento, a casa ganhou a sua cara.
E lentamente, a passo de jabuti, ela foi se recuperando.

domingo, novembro 04, 2018

Nestor Brandão


Rafael sempre gostou de morar na Nestor Brandão. Uma rua arborizada, tranquila, mas perto do comércio, das vias principais. Tinha sido uma sorte conseguir apartamento lá.

Certo dia, chegando do trabalho, ele se deparou com uma carta no escaninho de correspondência. Na verdade era uma notificação bem estranha.

– Amor, recebi uma mensagem bizarra da Prefeitura – comentou Rafael ao entrar em casa. – Diz que nossa rua vai mudar de nome para homenagear uma menina que morreu num assalto. Até aí tudo bem. Mas fala que a rua Nestor Brandão agora vai passar a ser em outro bairro e precisamos nos mudar.

– O quê?! Mas isso é uma maluquice!
– Pois é, vou ver isso na Prefeitura amanhã...

No dia seguinte, Rafael conseguiu falar com um atendente depois de muita espera.
– Senhor, é isso mesmo: a rua nova só vai admitir moradores novos, pessoas que não têm imóvel, especialmente familiares vítimas da violência.

– Como podem fazer isso sem consultar os moradores?
– Não se preocupe, senhor, a rua é exatamente igual, só muda o bairro. Não podemos fazer nada, são as regras.

Rafael esbravejou muito, mas em vão. O atendente explicou que, dali a uma semana, um funcionário da Prefeitura mostraria a rua.
Sete dias depois, após o expediente, ele se surpreendeu ao encontrar o funcionário esperando-o próximo à sua rua.

– A visita vai ser agora à noite?
– Sim, senhor, logo que sua esposa chegar.

Olhando para trás do homem, Rafael não reconheceu sua rua. Já não havia tantas árvores, as fachadas pareciam diferentes... Onde estava o canal? Ele balançou a cabeça. Escuridão e vista cansada não eram uma mistura boa.

Mônica chegou e eles pegaram carona com o funcionário. Alcançaram, por fim, a nova rua. Os dois ficaram boquiabertos: era exatamente igual à rua antiga. Nos mínimos detalhes. Todos os prédio idênticos.
Quando entraram no apartamento, perceberam algo surreal: todos os seus móveis já estavam lá, na ordem perfeita do imóvel anterior. Aliás, até as desordens deixadas tinham sido copiadas.

– Como isso é possível?... – falou Mônica.
– Senhores, não poderão mais voltar ao local da antiga moradia. Eu não quis dizer nada antes para poderem ver com os próprios olhos que está tudo como deveria estar. Qualquer dúvida, entrem em contato. – O homem entregou um cartão de visitas e saiu.

Mônica fitou o cartãozinho: "Francisco Wolks - Coordenador de Transposição de Regiões".
– Como podem fazer isso com a gente?

Ainda sem reação, Rafael ligou a TV. O telejornal mostrava um protesto.

– É um absurdo! – gritava uma mulher para uma repórter. – Colocaram nossas casas num lugar distante sem aviso! Agora construíram essas mansões da noite pro dia só porque é bairro rico!

– Senhora, é impossível transportar casas, assim como construir algo assim tão rápido. Vocês moravam mesmo aqui? Têm provas?
– Isso não vai ficar assim, vou buscar justiça!

Mônica virou para o marido com um olhar interrogativo. Rafael quebrou o silêncio, dando de ombros:

– Veja pelo lado bom: estamos num bairro melhor. Subimos de status num estalar de dedos.Nem todo mundo tinha sorte como eles. Os outros precisavam se esforçar mais. esforçar mais.