domingo, setembro 30, 2018

Desaniversário

Dora já está acostumada a ser a mais nova da turma. Não é que apenas pareça mais nova. Ela realmente é mais nova, muito mais. Passaram-se 16 anos do seu nascimento, mas, na prática, a menina só tem 4 anos.

Ok, vou explicar: Dora nasceu em 29/02, ou seja, num ano bissexto. Então, durante 4 anos, ela simplesmente não cresceu fisicamente, apesar de seu intelecto ter se desenvolvido.
Agora, seus pais tentam mais uma escola, para ver se ela se adapta. Dora imagina que todo mundo vai olhá-la torto, achando que aquilo é alguma pegadinha. E a situação iria piorar mais ainda quando ela começasse a responder certo ao professor. Os outros se sentiriam humilhados.

Mas eu não sei de nada disso quando Dora entra na sala de aula, nervosa. O diretor a acompanha para explicar à turma por que a menina está ali. Quando os cochichos começam, ele pede silêncio e pergunta se alguém poderia dar suporte à nova aluna.

Levanto a mão e Dora se senta ao meu lado.
– Obrigado, Lorena – agradece o diretor, mas na verdade faço isso só por curiosidade.
– Essa história toda é verdade? – disparo para Dora. – Acho difícil acreditar.
– Ah, é? E quando você nasceu?
– 1º de abril.
– Rá, rá! Grande piada.

A reação típica: risadas ou sorrisos amarelos. Ninguém vai às minhas festas de aniversário porque acham que é brincadeira. Até aquela menininha superdotada desdenha.

– E quando ninguém te dá parabéns?
Me viro para ver quem falou. É uma garota desconhecida.
– As pessoas me dão parabéns, mas quase sempre no dia 28/2 ou 01/03 – responde Dora.
– Estou falando de mim – disse a garota, ríspida. – Eu nasci à meia-noite, entre dia 31/12 e 01/01, então fico meio em dúvida em que dia nasci. Mas não faz diferença, porque todo mundo só está berrando, soltando fogos e bebendo. Prazer, sou Medina, a rabugenta.
– Formamos um belo trio – comento.

– E aí, Lorota, já arrumou emprego de babá?
Só podia ser o mala do Aparecido. Ficou chato assim porque faz aniversário 12/10 e, desde pequeno, só ganha um presente, incluindo Dia das Crianças. Acha que tem direito a encher o saco de todo mundo.

Dora deve ser a aluna mais excêntrica da turma agora. Até então, os mais peculiares eram os nascidos no Carnaval, na Semana Santa e em Corpus Christi. Todo ano comemoravam numa data diferente para acompanhar a celebração móvel. Quase ninguém dava parabéns, porque não há Facebook que dê conta de lembrar.

O problema é que há cada vez mais discriminação só por causa do dia em que a pessoa nasceu. Esse não era o mundo que o Chapeleiro esperava quando criou esta escola.



sábado, setembro 22, 2018

A sociedade secreta

Um dia ainda vou descobrir que existe uma sociedade secreta dos guarda-chuvas. Só isso poderia explicar como os vendedores de sombrinha e "familião" aparecem no exato instante em que cai a primeira gota do céu. De onde eles surgem? Onde fica toda a carga em tempos não pluviais?

Minha teoria é que eles vivem nos bueiros junto com as Tartarugas Ninjas, mas não têm um rato como mestre. Certamente são muito devotos de São Pedro e pedem sempre discernimento para saber quando devem ir para a luz ou mesmo para solicitar chuva. Mas também contam com um sistema avançado que deixaria o Instituto de Meteorologia babando.

Além disso, é uma organização tão poderosa que está intrinsecamente ligada aos guarda-chuvas desaparecidos em ônibus, metrôs, trens, escolas, bancos, nos mais diversos lugares. Sempre nos perguntamos como guarda-chuvas podem evaporar, sumir tão fácil. E se a Umbrella Corporation estivesse por trás de tudo?

Quem sabe seus tentáculos se estendam até as canetas, que brotam perto dos locais de prova após desaparecer misteriosamente em outros lugares. Fico fascinado com a capacidade desses profissionais caçarem concursos e estarem antenados, junto aos flanelinhas, que têm a agenda anual do município na cabeça.

É desse nível de organização e estratégia que o Brasil precisa. O próximo passo provavelmente será implantar cursos de direção de guarda-chuva, para as pessoas que esquecem que existem outras ao redor, quase furam seu olho ou arrancam sua peça quando passam bem educadamente.
Meu medo é se aliarem ao Detran e se transformar numa máfia que vai exigir renovação de guarda-chuva a cada 5 anos e vistoria anual.

Pensando bem, melhor deixar como está.

domingo, setembro 02, 2018

Os gauleses

Um mistério que sempre me deixa intrigado são as pessoas paradas na beirada da plataforma do  CANTO em Botafogo. Elas estão sempre esperando o metrô da Linha 2, com o letreiro verde, que vai para Pavuna e chega vazio ali.

Eu entendo perfeitamente quando todo mundo se aglomera na beirada na plataforma do MEIO, pois a porta desse lado abre primeiro. Aí começa a dança das cadeiras da vida real e a gente compreende por que brincou disso na infância: era tudo preparatório para sentar no metrô. É o estouro da boiada e não adianta reclamar com a tia que o amiguinho deu um chega pra lá em você para tirar seu assento.

O que não entendo é as pessoas ficarem na beirada da outra plataforma. A porta do lado direito abre depois, quando todo mundo no lado esquerdo já disparou e ocupou tudo. Mas os passageiros continuam estacados na plataforma errada, mais irredutíveis que a aldeia de gauleses de Asterix.

O que sempre acontece é que chega o metrô da Linha 1 e você, cheio de paciência, espera as pessoas à sua frente entrarem primeiro. Só que você descobre que aquelas pessoas são gaulesas, apenas atravancando o caminho, no meio da passagem, e ainda se ofendem se os outros reclamam ou esbarram sem querer.
Imagino que um dia, quando eu tentar contornar um dos gauleses, serei segurado pelo braço.

– Senhor, vou pegar a Linha 1 – aviso.
– Espere conosco, meu irmão.
– Desculpe, mas vou descer na São Francisco Xavier.

Tento me desvencilhar, mas o homem é mais forte. O apito da porta soa.
– Você já ouviu falar na Iniciativa Expectantes?
A porta se fecha e eu suspiro frustrado.
– Junte-se a nós, os Expectantes da Primazia da Porta Direita. Cremos que um dia a Porta Direita terá a Primazia. Nossa Expectativa não morrerá jamais.
– Perdão, eu sou católico. E sei que só a porta da esquerda...
– Não seja incrédulo! Espere e verá!

O metrô da Linha 2 surge do túnel, o letreiro verde cintilando. Ele desacelera e para. Posso sentir o peso da Expectativa – mas não meu braço, que está dormente.
Os passageiros da outra plataforma já se preparam; eu não me surpreenderia se pusessem as mãos no chão como se fossem velocistas.

E a Porta Direita se abre primeiro.

Sou ofuscado por uma luz verde berrante, ouço gritos. Quando consigo enxergar de novo, os gauleses sumiram.

Atordoado, vejo no chão um panfleto dos Expectantes. Após a Abertura da Porta, eles acreditam que o metrô da Linha 2 irá até Jardim Oceânico.

Melhor esperar sentado. Não no metrô pra Pavuna.