domingo, julho 26, 2020

Prova de vida

– Boa tarde. Gostaria de fazer a minha prova de vida.

– Qual é o nome do senhor?

– Malvino Coelho Moura.

– OK, só um instante… Temos um problema: o senhor não fez a prova de vida ano passado.

– Sim, é verdade, eu me esqueci. Sabe como é, a memória vai piorando com a idade... Queria regularizar agora meu benefício.

– Não será possível, senhor.

– Mas como não? Eu li na internet que basta se apresentar…

– Como podemos ter certeza de que o senhor estava vivo ano passado?

– Ora bolas, se estou vivo agora, como poderia não estar no outro ano?!

– Ah, o senhor não imagina os relatos reais de que eu soube. Pessoas consideradas mortas que voltaram à vida por um milagre…

– Mas elas não estavam mortas de verdade, né? Isso seria impossível.

– Estavam, sim. O senhor precisava ver a aparência decrépita de uma delas. Falou que nem morta ia perder a aposentadoria.

– Isso é força de expressão…

– Claro que recusei. Pior o outro que morreu de vergonha quando descobriu que tinha passado do prazo…

– A senhorita só pode estar brincando com a minha cara!

– Só queria testar seu senso de humor. O caso que aconteceu de verdade foi o de um cara que mostrou fotos do próprio enterro. Ele apresentou o atestado. Não sei como ele conseguiu ressuscitar.

– Meu Deus! Mas isso acontecia muito antigamente, a pessoa era dada como morta…

– Não, senhor, ele tinha morrido mesmo. E apareceu vivinho aqui na minha frente.

– Olha, não tenho todo o tempo do mundo. Poderia ver meu processo aí?

– O senhor poderia me dar sua identidade?

– Claro, aqui está… Ué, onde ela foi parar?

– O senhor saiu sem nada no bolso?

– Eu estava com minha carteira, mas não acho nada agora…

– Humm, o senhor poderia falar com aquele rapaz ali ao lado? Ele deve resolver a situação. Depois volte aqui.

– Claro, já volto… 


A moça aguardou pacientemente, então o homem retornou.


– Esse cara é um mal-educado! Eu o chamei, fiz uma pergunta mais de uma vez, mas não, ele parece ocupado demais para dar atenção a um idoso.

– Senhor, sinto dizer, mas não será possível completar a prova de vida.

– Isso é um absurdo! Onde está o gerente? Vou fazer uma denúncia…

– Posso até chamá-lo, mas não vai adiantar: o senhor está morto, mas ainda não se deu conta.

– Sua lunática…

– Tente conversar com mais alguém na agência. Veja se não estou com a razão.


O homem se afastou xingando, preparado para reclamar com outro funcionário (ou pelo menos tentar).


Joelma suspirou fundo. Vida de bancária médium não era nada fácil.

sexta-feira, junho 12, 2020

Feriadão

Uma semana inteirinha em casa. Para Thadeu, isso não ia fazer diferença, porque ele já estava trabalhando em home office e mal botava o pé para fora, mas muitas pessoas ainda precisavam sair para o serviço.

Agora poderiam ficar em casa. Bom, pelo menos era o que ele esperava. Não duvidava nada que gente sem noção iria querer aproveitar os feriados antecipados para passear, viajar… Que fossem impedidos e levassem uma bela multa.


Espreguiçou-se e pensou que pelo menos dava para curtir sem trabalhar, vendo séries, jogando… Ligou a TV e se deparou com uma espécie de passeata. Passeata em meio à pandemia? Todos de verde e amarelo… Demorou a entender a repórter. Ela falava que as pessoas estavam celebrando o Sete de Setembro.

Elas tinham enlouquecido. Uma coisa era adiantar o dia sem trabalho, outra era fingir que realmente era o dia. Não podiam esperar a disseminação do vírus cair e comemorar no dia correto? Patriotas…

As manifestações não foram poucas e Thadeu passou o dia assistindo em transe. O mundo estava perdido. Queria entender a mente daquelas pessoas. Quer dizer, era melhor não.


****

No dia seguinte, acordou e foi logo ligar a TV, esperando ver mais passeatas. Mas elas pareciam ter parado. O canal estava passando uma maratona de desenhos e Thadeu ficou um bom tempo matando as saudades de alguns antigos.

Resolveu ligar para a irmã; há muito tempo não falava com ela. 


– Maninha! Como está tudo aí?

– A gente está se adaptando, né? Voltar à vida normal é bem estranho.

– Você chama isso de vida normal?

– Ah, Thadeu, é claro que não é o normal de antes, mas já está bem melhor…

Ele soltou um muxoxo.

– Bom, como estão os catarrentos?

– Você sabe que não gosto de você chamá-los assim… Ah, estão aqui se divertindo, ganharam presente hoje.

– Decidiu fazer uma boa ação?

– Até parece… É que no Dia das Crianças eu sempre dou.

– Mas hoje é 9 de junho, você podia ter esperado quatro meses, né?

– Tenho que ir lá, o Mateus está berrando! Beijos.


Thadeu ficou olhando para o nada, segurando o fone. Marisa, tão sovina, comprando presente antecipado… O mundo dava voltas.

Thadeu estava entediado. Ficar sozinho preso em casa era a pior coisa. Decidiu que o melhor a fazer era ver mais desenhos animados; pelo menos não havia ninguém ali para julgá-lo.

Já na hora de dormir, ele pensou com expectativa: “Amanhã é o grande dia!”


****

Acordou pulando da cama com o despertador. Há 30 anos ele estava chorando numa maternidade, vendo o mundo pela primeira vez. Aquela era a hora exata da sua chegada.

Foi saltitando até a cozinha preparar um café da manhã caprichado. Só lamentava não poder sair com os amigos para comemorar, mas pelo menos ia receber muitas mensagens, falar com várias pessoas pelo telefone.


Como tinha saído das redes sociais e tirado o WhatsApp, acabava ficando dependente de quem realmente sabia seu aniversário. Culpa sua também. Bom, ainda estava cedo, ele tinha se apressado para nascer.

Deu uma passada de olhos nas notícias, não gostava muito de ver porque o deprimiam. Muitos tributos aos mortos, pessoas que se arriscavam indo a cemitérios. Não aguentou e saiu do site. Não iria ficar triste no próprio aniversário.


A manhã foi passando e nenhuma mensagem ou telefonema. Seria possível que, com o feriadão, todo mundo estivesse tão desligado?

Resolveu ligar para o André. Ia pegar no pé daquele mala.


– Fala, mandrião!

– E aí, biltre, o que você manda? Aproveitando a folga?

– Não está esquecendo de nada?

– Humm… Putz, a festa de Halloween, né?

– Do que você está falando?

– Ah, também esqueceu! A festa na casa da Mariana. Foi sábado.

– Em plena pandemia?!

– Ih, cara, você não está bem, não… Já está podendo ter festa, só não pode ficar lotado. Mas conta, o que foi que eu esqueci?

– Meu aniversário, claro. Deixa de fingir.

– Você não faz em junho?

– Então, cara…


Thadeu congelou, fitando a TV. Na chamada estava escrito "2 de novembro". Finados.

– Nós estamos em novembro?

– Eu sei que o ano passou rápido depois que a quarentena acabou, mas você está desnorteado.

Thadeu ficou em transe olhando para a televisão.

– Ei, alguém aí? – perguntou André.

– Como você está? Saindo normalmente?

– Humm, sim, aproveitando o “novo normal”, como as pessoas gostam de falar. Claro que a gente tem que ficar atento, pode ser que do nada voltem com a quarentena, mas está tranquilo, né? Vamos ver quando chega a vacina.

– Ah, cara, que bom saber. A partir de setembro já dava para ter uma esperança.

– É, mais ou menos por aí, tem 2 meses que respiramos muito mais aliviados.

– Foi bom falar contigo. Algum dia a gente marca uma cervejinha. Abraços!


Thadeu desligou. Algum dia longínquo… Ou será que o tempo continuaria naquela progressão louca? Ele torcia para que, do nada, semana que vem já fosse 2021 e o pesadelo tivesse acabado.

Apesar da esperança que o amigo lhe dera, não tinha coragem de sair. E se aquele espaço-tempo louco só tinha conexão com seu apartamento? Poderia sair e ainda encontrar um mundo em plena pandemia.


O jeito era ficar em casa e não ganhar nenhum parabéns. Será que poderia contar 2020 como ano de vida ou em 2021 ainda teria a mesma idade de 2019?

Mais uma vez passou o restante do dia grudado na TV, agora curioso para ver o futuro. Todos os lugares funcionando sem necessidade de preocupação, pessoas trabalhando, se abraçando, passeando… Pelo menos era bom ver que as coisas iam melhorar, claro que com toda a atenção.


****

Mais um dia. Thadeu não sabia mais o que esperar. Que surpresas lhe aguardavam?

Para se distanciar um pouco da TV, entrou num portal de notícias para descobrir como andava o futuro. A surpresa da vez é que ele tinha voltado a junho. Confuso, percorreu as manchetes, até que uma deu um estalo nele: “Tapetes de Corpus Christi enfeitam a cidade”.

Hoje não era um feriado adiantado, já fazia parte da semana e fora emendado com os outros.

Estava de volta à realidade caótica.


Thadeu se recostou no sofá, desanimado. Bom, voltaria à sua rotina de séries e videogame, e restava esperar que o dia seguinte mantivesse a progressão.

15 de novembro não tinha nada de especial, mas ele poderia checar a data no celular e na TV. Antes já tinha achado que estava no lucro, porque em novembro o feriado cairia num domingo, não numa sexta, mas nem poderia imaginar como seria preciosa aquela antecipação.

Depois da frustração, ele estava decidido: iria sair de casa para ver o mundo ao vivo.


****

Como será que estaria o futuro? Thadeu estava ansioso para testemunhar. 

Por via das dúvidas, pegou vários frascos de álcool em gel e máscaras e luvas sobressalentes. Um face shield também caía bem.

Todo paramentado, ele pegou o elevador. Já na rua, viu poucas pessoas de máscara. Parecia que alguns lhe lançavam olhares de estranhamento. Ele sempre tinha sido neurótico, exagerado, ninguém saía tão cheio de coisas assim.


Tinha a impressão de que estava vivendo um dia mais ou menos normal pré-pandemia. Mas uma quantidade considerável de pessoas na rua não significava nada para aquele povo sem noção. Precisava confirmar ainda.


Foi andando pela rua principal até o lugar que iria lhe dar a certeza. E lá estava: a universidade repleta de alunos. Os olhos de Thadeu marejaram. Ele ficou parado, embevecido, por um bom tempo, até levar um esbarrão de um estudante.

Caminhou mais um pouco e viu uma escola e uma creche funcionando. A essa altura, vendo como estavam as pessoas ao redor, tirou o face shield e até as luvas, mas não teve coragem de ficar sem máscara.


A primeira coisa que decidiu fazer foi visitar seus pais. Deu um abraço apertado neles, beijos, e passou um tempão conversando, matando as saudades. Infelizmente não poderia ficar lá o dia todo, então foi correndo visitar Marisa e Michael. Os catarrentos estava bem e, para variar, Mateus berrava. Ele perguntou pelo presente de Dia das Crianças e a irmã exibiu uma expressão interrogativa: por que tinha se lembrado disso do nada? Mal sabia ela…


Já de noite, ligou para André e marcou um chopp. Resolveu fazer hora na praça e no shopping para admirar o fluxo de pessoas.

Na hora combinada, começou os trabalhos no barzinho, mas logo apareceu o amigo.

– Há quanto tempo, camarada! – exclamou Thadeu.

– Também não exagera, a gente se viu semana passada.

Entre os dois feriados… Fazia sentido.


Conversaram, gargalharam, falaram mil besteiras. O tempo passou voando. De repente, Thadeu viu que eram 23h30. Ele parou no meio de uma frase, sem saber o que fazer. Quando passasse de meia-noite, o que iria acontecer: continuaria ali ou iria parar em casa no dia 13 de junho? Seria melhor ir para casa ou aguardar?

Bom, talvez desse no mesmo, então preferiu ficar e aproveitar pelo menos meia hora com o amigo.

– Ei, cara, tá tudo bem?

– Hum, sim, sim, só me lembrei de uma coisa, nada de mais.


Os minutos foram passando e o nervosismo de Thadeu só aumentava. Com o coração acelerado e a bebida subindo à cabeça, ele decidiu ir ao banheiro. Sentindo-se um pouco mal, meio zonzo, ficou sentado, tentando se recompor. Fechou os olhos, inspirou e expirou fundo, inspirou e expirou, inspirou e expirou… Parecia estar melhor.


Quando abriu os olhos, viu-se no banheiro de casa. Não era possível. Procurou o celular, até encontrá-lo no quarto.

00h01 do dia 13 de junho.


Thadeu desabou na cama, arrasado. Sua degustação do futuro tinha chegado ao fim. Agora lhe restava esperar pelo menos três meses…

Mas saber que as coisas iam melhorar já era um consolo. E faria campanha para que as pessoas respeitassem o isolamento e aquilo tudo terminasse o quanto antes. E talvez voltasse às redes sociais para interagir mais com a família e os amigos.Televisão demais não estava fazendo bem a ele. Mas um pouco de videogame não poderia atrapalhar…


Foi dormir e sonhou com o que estava por vir.


quarta-feira, maio 27, 2020

Bandeiras

– BRAVO! BRAVÍSSIMO!

Léo dá um pulo na cadeira quando o homem entra aos berros no estande. Ele parece um barril e tem até dificuldade para passar pela porta. Que raios é aquilo?

Para seu azar, o senhor vem bem na sua direção, os olhos brilhando. Senta-se com estrondo na cadeira à frente de Léo.


– Quero comprar um apartamento, o mais caro que vocês tiverem!

Léo mexe a boca como um peixe fora d’água. Nem nos seus melhores sonhos isso aconteceria. Isso só se via em filmes, o cara excêntrico que quer esbanjar dinheiro.


– M-mas é claro, senhor. Desculpe, qual é o seu nome?

– Miguel Ângelo. Mas pode me chamar apenas de Miguel.

– Pois bem, senhor Miguel, vou lhe apresentar as características…

– Não é preciso. Confio na qualidade. Com aquele movimento perfeito de bandeira…

– Perdão, senhor? – Léo pestaneja.

– Não é possível que você não tenha reparado. Venha cá.


O homem se levanta e praticamente arrasta o corretor pelo braço.

– Veja só. – Ele aponta para as mulheres balançando bandeiras do lado de fora.

– Humm, sim, foram contratadas para chamar atenção para o empreendimento…

– Ah, vocês não sabem a mina de ouro que têm em mãos. Olhe bem o movimento ondulante das bandeiras. É a proporção áurea! A sequência de Fibonacci! O número phi!


O homem esmigalha o braço de Léo em sua euforia. O corretor não sabe o que fazer além de concordar. Está quase abrindo mão de sua comissão. Quase.

– É maravilhoso mesmo, senhor. Obrigado por me abrir os olhos.

– Não vejo a hora de morar neste condomínio… Para quando está prevista a entrega mesmo?

– Janeiro de 2021.

– Imagine poder admirar todo dia essa proporção áurea! Queria muito saber quem treinou essa ondulação…

– Ahn… senhor?

– Sim? – responde o homem, sem conseguir despregar os olhos do lado de fora.

– Essas moças não vão continuar aí depois do fim da obra. Aliás, elas devem ir embora bem antes, quando todos os apartamentos forem vendidos…

– Mas como isso é possível?? – O homem se vira, rubro. – Eu estou comprando só pela sequência de Fibonacci!

– Senhor, mil perdões, posso tentar ver se haverá alguma bandeira tremulando dentro do condomínio…

– Não ouse tripudiar da arte! Por que ninguém compreende a verdadeira beleza da vida?


O homem sai pisando duro, quase arrancando o batente do estande.

Léo fica olhando abobalhado para as bandeiras ondulantes. De fato é impressionante a sincronia das moças… Será que há algum significado oculto?


Ele sacode a cabeça, voltando à realidade. O Solar Da Vinci precisa do seu trabalho.

segunda-feira, maio 18, 2020

Salinas

O coração de Letícia está acelerado. Ela até erra o botão na primeira vez, mas depois clica certo. A página do SiSU carrega lentamente, sua internet não ajuda nem um pouco. Tudo que ela quer saber é se conseguiu a vaga em medicina na Universidade Estadual de Montes Claros. Então lá aparecem seu nome, suas notas e sua aprovação… para o curso  tecnológico de produção de cachaça.


Letícia pisca os olhos, atônita. Ela relê seus dados para se certificar de que entrou no próprio cadastro. Está tudo correto. E ela está apta a ingressar no Instituto Federal do Norte de Minas Gerais, em Salinas.

Solta um suspiro trêmulo. Ela nem se inscreveu para medicina nesse instituto, não faz sentido.


Resolve sair e fazer login de novo. Mais uma vez a lentidão e mais uma vez aquela sandice. Checa o registro dos últimos acessos e percebe que alguém invadiu seu cadastro, pois não entrou na madrugada daquele dia.

Não consegue acreditar que aquilo aconteceu. E por que logo ela? Por que hackers a teriam escolhido para essa brincadeira de mau gosto?

O jeito é reclamar ao MEC e torcer que revejam sua situação. Fica tão desanimada que decide dormir logo. O dia seguinte vai ser tenso.


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Apesar de toda a apreensão, acaba acordando tarde. Mexendo no celular ainda na cama, descobre que não foi a única vítima dos hackers: diversas pessoas relatam mudanças de curso, às vezes até de estado. Pesquisa como recorrer ao ministério e segue todo o procedimento. Agora é esperar.


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O MEC não quis admitir as falhas na segurança do sistema e levantou suspeitas sobre os candidatos. Os pais de Letícia resolvem entrar na Justiça, mas ela não tem esperanças com aquele governo.


Começa a se acostumar com a ideia de esperar mais um ano para entrar na universidade. Mais um ano estudando sozinha enquanto seus amigos vão para outros lugares. Afinal, não há nenhuma faculdade em Fruta de Leite. Com tão poucos habitantes e um nome tão exótico… Letícia sonhava há muito tempo conhecer cidades maiores, mas ficaria mais um ano presa ali…


Humm… Se tudo der errado, existe a possibilidade de ela ir para Salinas. Ela já mora mesmo na região turística da cachaça, praticamente respira álcool de pinga. Seria uma desculpa para se mudar, se divertir, então largaria a outra faculdade quando passasse para medicina. Plano perfeito.


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Letícia está mais tranquila quando recebe a notícia de que seu cadastro não será corrigido. Pelo menos uma parte dos seus sonhos vai se concretizar. Quer dizer, precisa convencer os pais dessa solução, afinal, são diversos gastos envolvidos. Ela promete que vai trabalhar para se bancar também e que tentará vir a Fruta de Leite toda semana, no máximo de 15 em 15 dias.


Travam uma verdadeira guerra, mas no fim os pais cedem. Talvez tenham ficado com medo da ameaça dela de fugir de casa. Pelo menos vai estar ali pertinho, será uma transição enquanto não vai para Montes Claros, mais longe.

“Salinas, aí vou eu!”, pensa ela.


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Letícia acorda e fica olhando para o teto. Precisa ir trabalhar, mas cadê a disposição? Isso que dá ficar até tarde com os amigos.

Levanta-se preguiçosamente e vai lavar o rosto. Fita seu reflexo no espelho. Quem diria que sua vida mudaria tanto em 5 anos? A mudança de cidade abriu sua mente, suas perspectivas.


Por falta de opção, tinha começado a trabalhar numa produtora de cachaça porque, bem, Salinas praticamente vive disso. Sua função era burocrática, quase uma estagiária, se isso existisse naquela empresa. Ao longo de um ano de estudo e preparo, viu-se muitas vezes alheia à medicina que precisava aprender e cada vez mais interessada pela área que nunca a atraiu em Fruta de Leite. Uma coisa é ouvir falar, outra é estar lá dentro.


A família nunca trabalhou no setor meio que por uma questão puritana, de não se envolver com bebidas alcoólicas, “vícios”, então Letícia não o conhecia de verdade. Por isso foi tão difícil dar a notícia aos pais. A mudança que eles relutavam em aceitar agora seria permanente. Ao menos está mais perto de casa do que se trabalhasse em Montes Claros. Aliás, lá ainda estaria estudando.


Toma o café da manhã e se arruma para o trabalho. Mal acredita em sua sorte. Abre um sorriso e sai de casa.


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A noite é a hora de arejar a cabeça, descansar do dia cansativo. Letícia gosta de se entreter no computador, mas hoje será um momento diferente. Ela decidiu participar de um sistema revolucionário, ainda em fase de testes e em grande parte mantido em segredo. Por acaso ficou sabendo durante uma conversa de bar numa happy hour.


Pagou pelo acesso ontem e seus dados foram verificados. Entra com um IP anônimo e usa um link criptografado.

O sistema parece meio arcaico ainda, mas o importante é funcionar. Nunca imaginaria que algo avançado como aquilo seria possível tão cedo: viajar para o passado, mas não pessoalmente, e sim por meio do computador.

Através da tecnologia pode acessar qualquer site, programa, rede social de uma época escolhida, do jeito que eram em determinado instante. Ela pagou para poder fazer um acesso por até seis horas.


Está tão radiante com sua nova vida que só pensa em um objetivo: se comunicar com o hacker que trocou sua faculdade e agradecer a ele. Antes de pagar por aquele serviço, Letícia estudou programação, leu todas as notícias possíveis sobre o caso dos hackers do SiSu para entender as brechas e se aproveitar para invadir também o site.


O sistema onde Letícia está permite comunicação com as pessoas do passado, então ela vai poder falar com o outro hacker. Por ser um fato memorável, sabe exatamente a data e o horário em que se deu a mudança de cadastro, então ela se conecta. A tela fica toda preta. Letícia pragueja; não acredita que pagou aquilo tudo para agora travar.


Então a tela volta a acender e lá está sua inscrição de medicina em Montes Claros. 04h20. 04h21. 04h22. Começa um movimento estranho no site. Letícia faz abrir uma janela e escreve: “Olá, hacker!”


O movimento cessa. Letícia o assustou. Ela não quer que ele vá embora.

“Calma, eu só vim te agradecer.”

Uma frase surge abaixo da sua mensagem: “Quem é vc? Agradecer pelo quê?”

É claro que ele não tinha como saber. “Vc veio trocar minha faculdade. Sem querer, vc fez muito bem a mim.”


O movimento cessa mais uma vez. Droga.

“Alguém aí?”

“Não foi sem querer.”

“Como assim?”

“Espere um instante.”

O outro cursor se move e, então, aparece uma outra janela, parecendo de vídeo.

– Oi, Letícia.


Letícia se espanta, pois a impressão é de que aquilo não é gravado. Ela escreve: “Como vc faz isso?”

– Tecnologia avançada. – A mulher ri, mas a garota não entende do quê. – Bom saber que você está bem.

“E por que isso importaria?”

– Ah, porque… bem, estou fazendo tudo isto para você ficar bem, sabe?

“Não sei, não.”


– Eu estou muito infeliz como médica. Percebi que cometi um erro, mas não sabia bem o que iria fazer. Até que, numa das visitas aos meus pais, acabei conhecendo a indústria da cachaça e me apaixonei. Você sabe como eles nunca deixaram… a gente conhecer direito.


“Peraí, vc está dizendo que sou eu?”

– Sim, Lelê, eu estava angustiada, pesquisei e descobri que o curso de produção de cachaça nem existe mais. E seria muito difícil dar uma guinada dessas a esta altura, vinte anos depois do vestibular… Mas fiquei sabendo do sistema para hackear o passado. É a minha oportunidade.


Silêncio. Nada escrito.

“Então eu mesma que vou trocar o curso no futuro?”

– Sim. Você quer isso mesmo?

“Quero. Por favor.”

– Que tal você mesma trocar agora?


A garota olha para o relógio do computador: 04h34. Quase na hora em que o hacker fez a substituição.

“OK.”

– Na hora em que você confirmar a troca, eu vou deixar de existir.


Letícia assente, apesar de a mulher não poder vê-la.

Ela troca o curso e olha para si mesma num possível futuro.

– Obrigada.


Letícia aperta o botão e o vídeo some para todo o sempre.