sábado, maio 25, 2019

Dia de festa

Eu não estava vestido apropriadamente para aquela situação. E aquilo custaria minha vida. Quando minha colega disse que ia casar no cartório e depois fazer só uma “festinha no play”, comemorei: estava um calor dos infernos e não queria mesmo vestir roupa social, esportiva ou sei lá que nome usam agora. Eu não a conhecia tão bem, na verdade nem tinha amigos de verdade na escola, mas o que importava era comer e beber de graça.
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Cheguei à festa de regata, bermuda e sandália, mas estaquei na entrada: todo mundo estava na beca. Corri para trás de uma pilastra e fui me esgueirando até os meus colegas, e praticamente me enfiei debaixo da mesa. Na cara de pau, peguei emprestado o paletó do Daniel e, na mesma hora, comecei a suar.
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Para minha infelicidade, não via bebidas em nenhuma parte, nem mesmo salgadinhos.
Onde eu estava com a cabeça quando decidi…? Meu pensamento travou ao ver Thais se aproximar de mim. A noiva ia ver a calamidade.
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– Carlos, que bom que você che… O que é isso?!
– Foi uma idiotice minha, eu sei…
– Gustavo, vem aqui!
– O que foi meu, amor?
– Olha como o Carlos veio ao NOSSO CASAMENTO!!
– Desculpa, eu já vou embora, deveria ter feito isso logo…
– Não vai, não! – bradou Thais, com os olhos arregalados. – Garçons, peguem esse louco e levem para a cozinha!
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Dois brutamontes apareceram e me arrastaram para fora da mesa enquanto eu me debatia. Thais veio atrás, possessa.
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– Os salgadinhos não estavam muito bons mesmo. Nem mesmo a carne daquela vizinha irritante presta. Podem cozinhar esse daí. Sempre me pareceu apetitoso, mas eu respeitava.
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Olhei ao redor e vi vários membros e partes de corpo descartados. Quando me virei para o pátio em busca de ajuda, Daniel me encarou e, erguendo um olho de sogra, mordeu-o com avidez.
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Fui servido em pastéis leves e crocantes.

quinta-feira, maio 09, 2019

O autógrafo


Finalmente se passaram dois anos!


É tanta coisa boa na Bienal... mas nada pode superar o grande evento de Paulo Brazão. Diego nem sabe como vai se comportar na frente dele. Um escritor que o marcou desde criança e que estará lançando seu novo livro, o último da série que Diego começou a ler bem novo.


Munido de garrafas d'água, biscoitos, sanduíches e carregadores portáteis, Diego vai passar o dia inteiro no fim de mundo do Riocentro. Pegar tudo quanto é marcador, caçar promoções, encontrar amigos, conhecer as novidades.

Mas, antes, de qualquer coisa, precisa se garantir no lançamento. Infla seu colchão e permanece esperando. Conversando com outros fãs ardorosos, garante sua senha e pode aproveitar a Bienal até a hora do evento.

Diego está assistindo a uma palestra quando percebe que precisa correr para a o lançamento. Antes ainda tem que comprar o novo livro para conseguir o autógrafo. Nervoso, levou todos os livros anteriores para mostrar, pensou tanto no encontro com o escritor que não adquiriu o exemplar!
No estande da editora, há uma fila grande. Ele se remexe, impaciente, confere as horas. Como pôde dar essa bobeira? Logo aquele evento! Não vai se perdoar se algo acontecer...
Enfim chega ao caixa, então dispara pelos corredores e alcança o pavilhão praticamente na hora da sua senha. O salão está lotado. Ele é envolvido pelo entusiasmo que reina, tira foto com Paulo Brazão, bate um papo rápido, para que os outros leitores não o fuzilem muito com os olhos.
Ufa, que alívio! Ele sai do salão satisfeito com o autógrafo. Imagina a cara da Letícia quando vir...

Diego congela, apavorado. Esqueceu completamente. A melhor amiga tinha ficado mortificada porque não ia poder ir. Letícia tinha pedido que ele conseguisse um autógrafo do Brazão também para ela. E ele tinha falhado.  Que tipo de amigo era ele?
Desesperado, corre até os organizadores do evento e conta a história. Mas ainda há uma enorme fila e eles devem estar cansados de ouvir mentiras para justificar senhas perdidas.
Tenta recorrer à equipe da editora, mas nada. Compra outro exemplar e resolve esperar o evento terminar para emboscar o autor. Fica rondando o salão, finge que não está interessado, mas os organizadores passam a vigiá-lo.

Ele se esconde num canto, à espreita. A fila está diminuindo, daqui a pouco é o fim. Já está cansado e se apoia na parede de um estande. Tanta correria de um lado para outro...
Diego acorda sobressaltado. Ele cochilou! Brazão foi embora! Vai ter que dar o próprio exemplar autografado para Letícia e ficar sem nenhum. Bom, não tem outro jeito... ou tem?

Abre o livro na folha de rosto e fica analisando o autógrafo. Não parece tão difícil imitar. Primeiro treina num papel diversas vezes. Quando se sente mais seguro, forja a frase de dedicatória, a assinatura. Numa brincadeirinha, ainda inventa um brasão e desenha ao lado. Por um momento, acha que aquilo tudo é errado, mas então pensa que nada mais são que uns rabiscos na folha e o que vale é a intenção.
Respira aliviado e vai aproveitar o resto da Bienal.

***
No dia seguinte, Letícia recebe o livro e dá um forte abraço no amigo, entusiasmada. Diego não está muito empolgado, ainda sente vergonha do que fez. Será que dá para contar a verdade? Mas ela estão tão feliz... Imagina estragar a felicidade dela?
Decide que aquilo é apenas uma besteira, um capricho, e que até fez certo em agradar a amiga naquele momento difícil. A família nem tinha dinheiro para ela poder ir à Bienal, ainda mais que ir até lá e não poder comprar nada seria tortura.

Já em casa, Diego começa a ler o novo livro de Paulo Brazão. Realmente o autor amadureceu junto com seus leitores, o texto é muito mais maduro e Diego não sente a diferença às vezes gritante de quando se lê algo da infância. Isso ele já reparou em obras mais recentes do escritor, que não pertencem à série.
Agora Diego está curioso para saber como a narrativa se desenrola e mergulha na história.

***
Diego está muito triste: seu escritor favorito acabou de falecer. A notícia foi dada de repente, ninguém esperava. Parece que foi um ataque do coração.
Na mesma hora, liga para Letícia para se lamentarem, mas a amiga já está melancólica por outros motivos. A família ainda passa por dificuldades e não sabem como resolver a situação.
– Tem alguma coisa em que eu possa ajudar?
– Não, amigo, infelizmente não... Vamos tentar pensar em alguma solução.
Diego desliga, preocupado.

Ao longo da semana, Letícia não aparece na escola e ele não consegue contato com ela. Não tem com quem conversar sobre o grande destaque que Brazão tem na mídia, as homenagens póstumas. É anunciada uma exposição sobre o autor na ABL, alguns objetos e escritos serão exibidos para o público geral.
Diego pensa em ir à casa da amiga, mas não sabe se é adequado, se será intrometido. Então decide ir à exposição sozinho no dia seguinte.

***
Caramba, reuniram um acervo impressionante! Canetas, óculos, móveis, manuscritos antigos, livros que marcaram a vida do escritor, maquetes de locais significativos...
Fascinado por tudo, ele ouve que vai haver um leilão beneficente e, curioso, resolve ficar para ver como é. Os itens que aparecem são mais objetos do escritor, como documentos, livros, tinteiros, até uma escrivaninha. Os participantes estão animados, disputando as cifras, querendo também ajudar as instituições de caridade.

– De última hora, recebemos um exemplar único, que pode parecer não ter nada de mais – anuncia o pregoeiro –, porém... nenhum outro tem este tipo de assinatura.

Diego se distraiu por um momento, mas agora se vira para ver o que é. O último lançamento de Brazão com o autógrafo que Diego inventou.

– Reparem no traço peculiar e no desenho singular. Nunca se viu esse brasão em outro lugar. Quem dá um lance por esta preciosidade?

Diego está de queixo caído, em choque. Estão leiloando um livro com autógrafo falso? Ninguém fez um exame de grafologia ou algo do tipo?
Os lances se sucedem, a disputa é acirrada, até que um senhor arremata, exultante. Pegando o exemplar, ele o abre e admira a folha de rosto, alisando-a.

Então Diego se dá conta: como aquele livro foi parar ali? Virando-se para a porta do salão, ele vê Letícia com os pais.
A amiga sai correndo na sua direção e lhe dá um abraço apertado.

– Diego! Que bom que você está aqui! – Ela o solta e parece meio envergonhada. – Você... viu que eu leiloei o seu presente? Desculpe, achamos que era uma oportunidade única, eu entrei em contato, aceitaram nos ajudar, até porque eles ganham uma comissão... e agora vamos ter o dinheiro para quitar nossas dívidas! Não é o máximo? E tudo graças a você!

Os pais de Letícia o abraçam e chamam o arrematante do livro para todos tirarem uma foto juntos.

Diego se sente uma farsa.

E nesse dia ele decide se tornar falsário.