sábado, dezembro 21, 2019

A escolhida

Adalgisa sempre tinha sofrido nas mãos da família – se é que podia chamar aquilo de família. Era obrigada a morar na casa de uns tios distantes, que nunca tinha visto antes de perder os pais. Às vezes a vontade que dava era de sair socando todo mundo ali, mas não tinha muita opção… A alternativa era ir para um orfanato.

Seu suplício começara havia 11 anos, mas pareciam décadas. Ela aceitaria qualquer coisa para se livrar daquele lugar. Inclusive uma águia de duas cabeças falante entrando no seu quarto.

A águia estava lhe dizendo agora que Adalgisa era a escolhida. Quer dizer, uma das cabeças dizia isso, porque a outra desmentia tudo em seguida, afirmando que sua companheira tinha comido um esquilo alucinógeno.

Tentou fazer algumas perguntas, como "Escolhida por quem?", "Escolhida para quê?", "Fui escolhida democraticamente ou é ditadura?", mas cada cabeça respondia uma coisa e ela começou a ficar maluca.

Por fim, tinha que fazer uma escolha ela mesma, entre ir para São João de Pirapirapirô ou Barra de Saia Longa. Qual cabeça parecia mais convincente?

Ela deu um pulo quando a campainha tocou. Os tios nunca recebiam visita... Saiu correndo para abrir primeiro, derrubou o primo da escada, deu uma rasteira no tio e jogou a tia pela janela. Já não se importava mais com nada. 

Um homem enorme estava à porta, sua moto fumegando atrás.
– Adalgisa? Vim buscá-la.
– Você acha que eu vou sozinha com um estranho barbudo e sujo, nessa moto de quinta categoria?
– A Escola de Magia de Aroeira espera a senhorita há anos…
– Aroeira? Onde raios fica isso?
– Não podemos revelar. Só poderei comentar mais quando chegarmos ao destino…
Adalgisa gargalhou.
– Golpezinho malfeito, hein? Leva sua águia de duas cabeças e mete o pé!

Ela bateu a porta e resolveu que já estava na hora de ir morar sozinha.

domingo, novembro 10, 2019

A tristeza das luzes

O pinheirinho parecia estremecer ao vento. Ainda jovem, ele admirava os pais, que se elevavam até as alturas, carregados de pinhas.
À sua volta, havia pinheiros dos mais diversos tipos e tamanhos, cuidados por humanos. Recebiam toda água, iluminação e poda que eram necessárias, paparicados o tempo inteiro.
De vez em quando, um conhecido seu era levado para outro lugar e nunca mais reaparecia. Justo no tempo frio faziam isso? Será que iam ficar no meio da neve?
Mas alguns diziam que lá fora também havia um ambiente quentinho, repleto de luzes e música.
O pinheirinho ficava curioso, mas preferia permanecer ao lado da família. Se pudesse escolher.
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Quando as pinhas apareceram pela primeira vez, ele teve vontade de se exibir para todo mundo. Os pais estavam orgulhosos e os humanos fizeram a festa, recolhendo-as não sabia para quê.
O pinheiro continuou crescendo e já quase não conhecia os que estavam ao seu redor. A maior parte tinha ido para o mundo de fantasia.
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Até o dia em que vieram buscá-lo.
Ele estava dividido entre o medo, a tristeza e a ansiedade. Mal conseguiu se despedir.
Colocaram-no num lugar grande e escuro, num solo estranho, e um zumbido começou. Pareceu durar uma eternidade. Não conseguia esticar suas raízes, que pareciam meio dormentes.
Quando o zumbido parou, ele estava ainda meio fraco, zonzo, não acostumado à nova terra.
Surgiu uma claridade e o pinheiro se viu no tal mundo que tinham descrito. Era exatamente daquele jeito: luzes, música, cores por todo lado. Foi colocado em meio a um monte de humanos, e só então reparou que estava fixado num grande recipiente.
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Filhotes de humanos começaram a correr em volta dele com caixas que tilintavam. Eles as abriram e começaram a pendurar em seus galhos objetos estranhos, circulares, brilhantes, alguns com formato de humanos, outros de seres que não conhecia.
Seus galhos começaram a pesar um pouco, uma humana gritou e os pequenos pararam. Ela pegou um objeto cheio de pontas e prendeu no topo do pinheiro.
Ia precisar aguentar aquelas coisas presas por quanto tempo?
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Um humano colocou água na terra e o pinheiro se sentiu agradecido. 
Resolveram envolver nele uns ramos com luzes que piscavam e aqueciam. Então, do nada, o ambiente escureceu e só ficaram as luzes dele. O pinheiro suspirou e pegou no sono.
Quando acordou, os ramos estavam apagados, mas os objetos continuavam pendurados. Experimentou se sacudir um pouco e alguns caíram com um tilintar. Logo apareceu um filhote e colocou de volta. Não ia ser fácil.
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Os dias se passaram e chegou o dia mais colorido, iluminado e barulhento. O lugar se encheu de humanos. Todos mexiam nele, alisando-o, como se fosse um ser estranho.
Abaixo dele, objetos coloridos e quadrados se espalhavam, olhados a todo tempo pelos filhotes. De lá saíram coisas impressionantes, que o pinheiro nunca tinha visto, atiçando sua curiosidade.
Mas ele estava cansado, meio fraco. Havia tempo não pegava um sol de verdade. Os raios mal o alcançavam.
Logo a confusão passou e ele se viu sozinho com as luzinhas.
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Nos dias seguintes, o ambiente se tornou menos colorido, menos iluminado, mais silencioso. Então os filhotes tiraram os ramos e os objetos pendurados, para seu alívio. Ele até se sentiu meio nu.
Ninguém mais parecia lhe dar atenção.
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Certo dia, viu que os humanos apontavam para ele, as caras sérias. Começaram a brigar, sumiram.
O pinheiro estava esgotado, angustiado. Recentemente, não o estavam regando direito.
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Um dos humanos reapareceu e carregou seu vaso para o quintal. O pinheiro nem acreditou que pegaria sol de verdade. Ficou largado lá sozinho.
Então ouviu um zumbido, que foi aumentando de volume até surgir uma máquina que lhe despertou lembranças.
Foi colocado dentro e tudo escureceu.
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O zumbido persistiu e embalou o sono do pinheiro.
Foi acordado com um baque alto, uma porta sendo aberta.
Ele não acreditava. Lá estavam seus pais.
Com violência, foi arrancado do vaso e plantado num buraco, que logo foi enchido de terra. Suspirou ao conseguir esticar novamente as raízes. 
Estremeceu ao vento e verteu lágrimas de orvalho.

sábado, outubro 26, 2019

Fora do padrão

Bendita hora em que Flávia foi aceitar aquela revisão.
Ela nem tinha perguntado do que se tratava o livro, pois estava precisando de dinheiro, e agora se deparava com aquela não ficção tenebrosa.
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"Entediante" não conseguia descrever o tema do trabalho e a abordagem terrível. Isso sem falar no texto mal escrito. Mas o que a estava tirando do sério era a padronização. Ou melhor, a falta dela.
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O autor parecia que tinha escrito normalmente, depois pensou: quais são todas as maneiras de formatar um texto? Como posso diversificar? E fez uma análise combinatória com bastante criatividade.
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Ela tinha pesadelos com a revisão. Acordava gritando, lembrando-se de uma padronização que tinha deixado passar. Corria até o escritório para anotar antes que esquecesse.
Letras maiúsculas, versaletes, itálicos, negritos, parêntesis dançavam em sua mente, assombrando-a.
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Flávia teve vontade de queimar a prova. Seria bonito vê-la pegando fogo. Ou quem sabe tacar tudo pela janela e contemplá-la sendo levada pelo vento? Colocar num triturador de papel. Jogar no mar. Atirar um balde de tinta em cima.
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Mas isso não iria eliminar o arquivo maldito. Planejou ir à editora com a justificativa de pedir mais prazo (o que precisava mesmo) e, lá, apagar o original. Mas o livro continuaria a existir na casa do autor.
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Fingindo que precisava tirar dúvidas com o autor, conseguiu o e-mail dele. Depois, o telefone. Marcou um encontro na casa dele, alegando que as questões eram muito complicadas e seria mais fácil tratar presencialmente.
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No dia seguinte, Flávia se preparou. Chegou à casa do autor e conseguiu se conter e ser cordial até ele mostrar o arquivo.
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– Essa é a única cópia que vc tem dele?
– Ah, não, eu sempre salvo no HD externo, na nuvem…
– Preciso que vc apague todas agora.
Ele riu.
– O trabalho te ofendeu? Você acha mesmo que vou jogar fora um trabalho de anos… O que você acha que está fazendo?!
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Flávia apontava uma arma para ele.
– Ninguém merece ler um trabalho ruim como o seu. Você escreveu só para infernizar os revisores.
– Calma, você está precisando de ajuda…
– APAGA AGORA! TODOS OS ARQUIVOS!
– Tu-tudo bem.
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Com dificuldade para segurar o mouse firme, o autor foi selecionando uma a uma as cópias.
– Ligue agora para a editora e diga que desistiu de publicar, para apagarem os arquivos.
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O homem ficou paralisado.
– AGORA!
Ele obedeceu, apático e incrédulo.
– Você nunca mais vai procurar uma editora para publicar essa merda. Me entendeu?
Silêncio.
– ME ENTENDEU?
– Sim...
– Não pense que vou esquecer o suplício que você me fez passar. Vou sempre procurar seu nome na internet para ver se cumpriu a promessa. E posso fazer alguma visita aqui.
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Flávia guardou a arma e deu um tchauzinho.
– Trate de procurar outra profissão.
Com um largo sorriso, ela lhe deu as costas e foi embora.

domingo, setembro 15, 2019

Self-service

Arroz, feijão, purê, frango, quibe, suflê de queijo, bolinho de peixe... Abel não estava nem aí se algumas coisas não combinavam ou se era exagero: se estava com vontade de comer, ia botando. Pegou uma Coca para acompanhar e pesou o prato.

Agora precisava achar o pessoal do trabalho. Rodou tanto se decidindo onde comer que não sabia mais onde eles estavam sentados. Primeiro ia subir os três degraus até a praça de alimentação... Ah, não, tinha mais um degrau! O corpo foi muito lento para reagir e, quando viu, Abel estava estatelado no chão do shopping, comida espalhada para todo lado, o prato milagrosamente intacto embaixo da bandeja, a lata tinha rolado para um canto.

Dolorido e morrendo de vergonha, ele se levantou olhando em volta. As pessoas o encaravam, algumas se continham para não rir, mas também havia almas caridosas. Meio mancando, recolheu o que pôde com a ajuda de outros. Segurando o prato, a lata e a bandeja, voltou para o restaurante a quilo. Com pena, o gerente deixou que ele colocasse comida de novo sem pagar. Abel pegou o que viu pela frente primeiro, sem se preocupar em repetir os alimentos de antes.

Algumas pessoas ainda o olhavam como se ele fosse um ET.
"Queria muito que isso não tivesse acontecido...", pensou Abel.
Meio zonzo, prestou toda a atenção nos degraus e atravessou a praça de alimentação. Pelo menos já não sentia dor.
Enfim avistou seus colegas. Não ia contar nada a eles, ainda estava com vergonha. Sentou à mesa e, quando foi comer... Ué, ele não tinha pegado suflê desta vez. Nem quibe... Mas o prato estava exatamente igual ao de antes da queda. Aliás, a bandeja também, laranja, e não azul.

Voltou ao restaurante como se para agradecer de novo pela bondade, mas o gerente não entendeu do que ele estava falando.
O seu desejo tinha provocado aquilo? Imagina se pudesse retroceder e desfazer cada besteira, arrepender-se e voltar atrás?
Especialmente aquela vez em que recusara a oferta de publicarem um livro seu por pura insegurança. Agora queria muito ter aceitado...

Então veio novamente a vertigem. E o agente apertava sua mão.
– Parabéns, vamos fazer do seu livro um sucesso.
Abel deu um sorrisinho, ainda atordoado.
Quando já estava sozinho, começou a cogitar se deveria tentar outras hipóteses, realidades também... Mas não, não podia ficar pulando de uma coisa para outra como um doido. Precisava focar numa e ver se dava certo.

***
No dia do lançamento do livro, Abel estava muito nervoso. Não tinha a mínima ideia do que as pessoas iam achar da obra.
Chegou cedo à livraria e ficou esperando. Desde o início de sua nova vida, tinha se forçado a não pensar em desejos, para não "viajar" sem querer, até porque algumas vontades eram meras bobagens.

Os leitores começaram a chegar e, quando viu, Abel estava com um bom público. Ele estremeceu ao avistar Jean Dias no canto, conversando. Era um grande crítico literário e tinha recebido um exemplar antecipadamente, pois o agente esperava que ele fizesse uma resenha e alavancasse as vendas.

Jean não veio pedir seu autógrafo, então, no fim da sessão, Abel tomou coragem para perguntar a ele sua opinião.
– Quer que eu seja sincero? Confesso que não gostei. O livro poderia ser bem menor, algumas partes se arrastam muito e o fim é muito acelerado, não fecha bem... Desculpe. Se preferir, não faço a resenha.
– Caramba, que pena... Queria muito que você tivesse gostado.
– Eu gostei do seu livro! Inclusive, pensei em escrever uma resenha. O que acha?
Abel ficou estarrecido. Seu desejo não podia alterar outras pessoas.
– Eu... eu acho ótimo.
– Parabéns pela obra!
Jean apertou sua mão e foi embora.
Abel ainda precisava digerir aquela novidade. Alegou uma dor de cabeça e foi para casa dormir.

***
Alguns dias depois, ao acordar, Abel fitou seu livro no criado-mudo e resolveu fazer algo que já deveria ter feito: relembrar a própria história. Tinha escrito havia tanto tempo que não se recordava dos detalhes.

No meio da leitura, até concordou com um dos Jean Dias: alguns trechos eram longos demais, inclusive banais, como um almoço no shopping, um protagonista que conseguia publicar sua obra e recebia elogios de um crítico famoso... Exatamente como acontecera com Abel... A diferença é que, no livro, o crítico o convidava para um almoço. Nossa, imagina visitar a casa do Jean Dias! Queria muito conhecê-la.

Surgiu a vertigem e ele apareceu na sala de Jean.
– ... e acho que você tem futuro, sabe?
O crítico o encarou, à espera de uma resposta. Abel ainda estava com cara de paspalho e só conseguiu fazer sim com a cabeça.
Passou o almoço todo desnorteado. Aproveitou a oportunidade ao máximo e voltou para casa, sem ter com quem falar. Não podia deixar de perceber que suas amizades não eram as mesmas, sua trajetória havia moldado outras afinidades. A família nunca fora próxima mesmo.

Agora lhe restava se dedicar ao novo livro que a editora já esperava. Ou talvez terminar de reler sua história em busca de ideias...
Abel ainda refletia sobre como tinha obtido aquele poder. Em que momento tudo começara? 
Lendo sua história, ele descobriu, mas não sabia se tinha coragem de fazer aquilo.

***
De noite, Abel ainda se perguntava se valia a pena seguir o livro, mas era o único jeito de manter sua nova vida. 
Ele teria que voltar no tempo, justamente para o momento do almoço.

Abel formulou o desejo, sentiu a vertigem e, de repente, lá estava no shopping. Olhou ao redor, nervoso. Não estava encontrando. Então, avistou a si mesmo servindo-se no restaurante. Com a bandeja laranja. Sabia o que precisava fazer agora.

Correu para perto do outro Abel, mas hesitou. O pensamento queria fluir por sua mente. Queria muito que o seu outro eu tivesse o poder de alterar o próprio passado. Mas não qualquer acontecimento: só o que estivesse no seu livro.

Estava feito. O outro Abel se encaminhou para os degraus e, mais uma vez, caiu de forma vergonhosa. O Abel do futuro quase sentiu uma pontada de dor.

Olhou ao longe e viu seus antigos colegas de trabalho. Deu até saudade. Tinham sorte de não saber o que ainda viria pela frente em suas vidas.

Voltou-se para seu outro eu a tempo do momento crucial: a realidade se borrou e, quando tudo ficou nítido, a bandeja estava de novo laranja.
Não havia mais o que temer. 

Então o Abel do futuro foi tomado por um impulso. Saiu correndo.
Já nos degraus, derrubou seu antigo eu e disparou para longe.
Ele não iria perceber a mudança da realidade.

Em meio à corrida, o Abel consciente foi se desmaterializando até sumir.

domingo, agosto 18, 2019

Magia

– Alô?
– Bom dia. Poderia falar com a senhora Souza?
– É ela mesma.
– É uma honra estar falando com a senhora. A senhora fará parte da primeira turma de bruxos avançados.
– Bruxos?
– Sim, da Escola de Magia de Aroeira. Selecionamos a senhora…
– Desculpe, não tenho interesse em mágica.
– Na verdade é uma escola de magia. As pessoas que não tinham tanta aptidão na infância ou não couberam nas vagas que tínhamos disponíveis agora têm uma nova chance de aprender…
– E por acaso você sabe como eu era na infância?
– Ah, sim, acompanhamos os bruxos desde pequenos. A senhora não é tão habilidosa, mas acreditamos que, se for bem trabalhada…
– Vocês me ligaram para me insultar?
– Desculpe, senhora, não foi minha intenção! Se a senhora não fosse talentosa, eu nem ligaria. Nunca reparou em nada que tenha feito fora do normal, que não conseguiu explicar?
– Sim, ouvir você por tanto tempo. Adeus…
– Como foi que a senhora levantou aquela cadeira quando tinha 10 anos?
– Como você sabe disso? Eu não levantei nada, foi só uma ventania que derrubou.
– Como foi que a senhora transformou seu coleguinha num chihuahua?
– Meu colega fugiu da escola, sumiu. Eu não tenho nada a ver com isso.
– Senhora Souza, nós temos gravações, não há como negar.
– Sinto muito, também não tenho condições de pagar.
– Mas não precisa…
Clique.

– Alô?
– Bom dia. Senhorita Lima?
– Sim, é ela.
– Estou ligando para informar que a senhorita fará parte da primeira turma de bruxos avançados.
– Meu Deus, não acredito, esperei por isso a vida inteira! Quando vai vir minha coruja?
– Na verdade, senhorita, não enviamos mais corujas. Atualmente é tudo tecnológico...
– Não mandam nem cartas escritas à mão com sinete, brasão?
– Não, senhorita, a Escola de Magia de Aroeira está sincronizada com os novos tempos.
– Que decepção… Eu que não vou querer participar dessa escola hipster.
Clique.

– Alô?
– Senhor Almeida, quer ser aluno da Escola de Magia de Aroeira? Primeira turma de bruxos velhos.
– O quê?
– Quer que eu desenhe? É uma escola onde pessoas inaptas têm uma segunda chance de destruir tudo com magia. Já sentindo a idade, como o senhor.
– Que negócio é esse?

– Mandarei uma coruja para sujar sua casa e milhares de cartas iguais para encher de papel todos os cômodos. Espero que fique feliz. Tenha um bom dia.

sábado, julho 27, 2019

Noir

Ela parecia estar fora de vista. Eu me esgueirava pelos becos em meio à penumbra. O cheiro de gordura, fumaça e suor já me embrulhava o estômago.
Mas eu não podia perder o foco: ela estava atrás de mim, implacável.

Avistei a porta dos fundos de um bar, que dava para o lugar que eles chamavam de cozinha, de onde saía aquela comida nojenta. Me abriguei lá, pensando quanto tempo ainda tinha antes de ela me alcançar.

Podia sentir sua aproximação… Lá estava. Pela brecha, a vi passar, a arma na mão.
Talvez não desconfiasse se eu me metesse na latrina mais adiante. Ou se me jogasse dentro da caçamba de lixo.

Aguardei, suando frio. A qualquer momento ela iria voltar.

Num rompante, decidi que era hora. Atravessei a porta e saí correndo para a latrina.
Mas fiz a besteira de olhar para trás.

Ela pareceu se materializar das sombras e disparou a arma.
Fui atingido de forma certeira e desabei na sarjeta.

– Por favor, não me mate!

– Pedro, você quer parar com essa palhaçada? Já basta ter quebrado o vidro da janela, ainda fica fugindo de mim pela casa como se estivesse num videogame. Vai levar muito mais!


Minha mãe pegou o chinelo de volta e eu vi que era meu fim.

sábado, julho 13, 2019

Lagarteando


– Manhê, pega a toalha pra mim?
Lucas queria dar uma de gente grande e tomar banho sozinho, mas tinha esquecido justo a toalha.
A postos dentro do boxe, abriu a torneira e deixou que a água escorresse por seu corpo. Fechou os olhos e aproveitou a ducha caindo no rosto até que ouviu uma pancada no vidro.
Tá aí, cabeça de vento. Quer ajuda?
Tá tudo certo. – Ele levantou o polegar.
A mãe assentiu, mas sem parecer muito convencida, e saiu do banheiro.

Não era tão difícil tomar banho sozinho, ora. Começou a se ensaboar. Já ia tirando a espuma quando viu um movimento pelo canto do olho.
Olhou para o lado e congelou.
Aaaaahhhhh!!!!
Lucas saltou para fora do boxe com a água ainda ligada, escorregou e acabou levando um belo tombo.

Que foi, criatura? Apareceu um alien aí?
Tem um filhote de crocodilo no boxe!
A mãe revirou os olhos e deu uma espiada.
Você nunca tinha visto uma lagartixa?
Não desse tamanho. Nem tão perto.
Deve ser a mamãe.
Ainda tem os filhotes por aí?
Calma, Lucas, elas não fazem mal. Até comem insetos, ajudam a gente. Essa aí parece simpática.

Lucas bufou. Arriscou uma olhadinha e viu os olhinhos pretos o encarando. Dava a impressão de estar com medo dele. Estavam quites.
Pegou a toalha e preferiu se enxugar de uma vez daquele jeito mesmo. Adeus, lagartixa.
*
Mãe, pode me ajudar no banho?
Lucas nunca ia admitir que estava com medo, nem com a encarada da mãe.
A lagartixa estava em outro canto, de costas. Lucas estava na expectativa dela se virar com seus olhinhos sempre atentos... mas não com uma barata na boca.
Ela é uma fera mesmo!
É bacana, mas nojento. Vamos sair logo.

*
Lucas agora só queria saber de observar o monstrinho. Ficava torcendo para ele aparecer com uma nova presa. O mais engraçado foi quando Biriba descobriu a lagartixa. Sua gata tentou dar um bote, mas o rabo do bichinho se soltou! Ficou se debatendo e deu tempo da Croc se safar.

*
Ela ficou sumida por um tempo, depois surgiu com um rabo novo. Uma fera com superpoderes.
Lucas já se sentia bem protegido no banho, o que podia acontecer com ele?

Às vezes levava susto quando Croc passava em cima do seu pé, às vezes quase pisava nela quando aparecia do nada, no seu reino que era o boxe.

*
Num dia de aguaceiro no banho, Lucas viu a lagartixa crocodilando, parecendo um jacaré a nadar. Ele tentou se controlar, mas não conseguiu, e pegou na Croc como se fosse um brinquedinho.

Ela não fez nenhum movimento de susto. Ele a suspendeu para analisar melhor, mas o animal continuou imóvel, os olhinhos sem brilho.

Não podia ser.

– Manhê!

A mãe não sabia o que tinha acontecido, mas falou que era coisa da natureza, que Croc tinha descansado sem dor, e ainda com o rabo novo.

Lucas fez carinho na cabeça dela e levou o corpinho até um canteiro de flores. Com uma pequena pá, cavou um buraco e a enterrou.
Uma lágrima caiu para marcar o local e Lucas sorriu ao lembrar tudo que tinham vivido.

Adeus, Croc.

sexta-feira, junho 21, 2019

O aniversariante

Tudo começou numa inocente quinta-feira.
Pedro chegou meio sonâmbulo à escola, doido para que a semana terminasse logo. Já na sala, aproveitou que o professor ainda não tinha chegado e abaixou a cabeça sobre a carteira para tirar uma soneca. Assim, não conseguiu ouvir as risadinhas em volta. Nem mais nada.
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– Pedro Tavares!
Pedro levantou a cabeça num estalo, quase caindo da cadeira.
– Você acha que aqui é lugar de dormir? – perguntou Eunice.
– D-desculpe, professora...
– Dá um desconto, professora, ontem foi aniversário dele, ele aproveitou até tarde com a família – interveio Marcelino.
– Ah, parabéns! – exclamou Eunice. – Mas isso não é motivo para tirar cochilos.
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Pedro assentiu mecanicamente e olhou para Marcelino, que apenas respondeu com um sorrisinho.
As aulas continuaram num marasmo e Pedro foi para casa. Ainda não dava para perceber o que tinha se iniciado.
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Mais um dia de escola e ele estava um pouco mais animado, pois aula de Português era sempre bacana. Quando a professora chegou à sala, a turma inteira começou a bater palmas e o garoto foi no embalo, sem entender o que estava acontecendo.
Quando percebeu, todos cantavam parabéns. Putz, tinha esquecido de alguém...
Os gritos de "Pedro! Pedro! Pedro!" ecoaram pela sala e vários colegas vieram cumprimentá-lo, além da professora.
Por que essa fixação agora com seu aniversário? Ele não achava a menor graça naquilo.
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Pior que fim de semana ia ter festa do priminho e ouviria mais cantoria. Mas tudo bem, não seria para ele.
No sábado, Pedro só pensava nos salgadinhos e docinhos com que iria encher a barriga. Mas primeiro precisava cumprimentar todos os parentes...
– Pedrão!! Cada vez mais bonito! Só tem que dar um jeito nesse cabelo branco, arranca o fio! Senão perde a juventude.
Tio Valdo sempre gostava de debochar e Pedro dava um sorrisinho amarelo para não magoar.
Agora queria mais era se empanturrar.
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Logo antes de deitar, estava escovando os dentes e quase se engasgou com a pasta.
Dois fios brancos espetavam na sua cabeleira. Afobado, pegou uma pinça da gaveta da mãe e arrancou aquilo. Que doideira.
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Na segunda, já tinha até se esquecido dos fios. Enfrentar a aula de física é que seria dureza. Na carteira onde costumava sentar, encontrou um embrulho espalhafatoso.
– Bom dia, turma. – Chegou José Fernando. – O que é isso, Pedro? É seu aniversário hoje?
O grupinho da farra bateu palmas e o professor o cumprimentou.
– Olha, eu tinha comprado um livro, mas acho que pode ser pra você. Que tal?
Pedro aceitou, mas nem olhou para o livro. Ele queria sair dali. Guardou-o na mochila com o embrulho e focou na aula como nunca antes.
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Em casa, resolveu ver o que ganhara. No embrulho, nada, apenas palhaçada. E o livro era O curioso caso de Benjamin Button. Nunca tinha ouvido falar. Leu a sinopse e logo se interessou.
O livro era perturbador, mas o atraía. Quando deu por si, no meio da leitura, a barriga roncava e resolveu comer alguma coisa. 
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Dois dias depois, tudo parecia ter se acalmado, mas então Pedro foi recepcionado com um bolo. Luis Guilherme acendeu a vela e a professora de espanhol acompanhou a cantoria.
Pedro estava cada vez mais incomodado em ser o centro das atenções. Porém, nem podia imaginar como a situação se tornaria mais desagradável.
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Arrumando-se para a escola em mais um dia, imaginando que tipo de "surpresa" lhe reservavam, ele quase gritou diante do espelho. O que tinha acontecido com sua pele? Ele nunca havia reparado naquelas rugas. Seria de tanto contrair o rosto em suas palhaçadas?
Passou as mãos pelas bochechas, pela testa, e resolveu catar na gaveta da mãe um tipo de "creme rejuvenescedor".
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Não queria ir para o colégio. Aqueles parabéns já estavam mexendo com a cabeça dele.
Saiu para arejar a mente e foi andar na praça sem avisar aos pais.
Precisava passar o tempo. Ficou contemplando o fluxo de pessoas, os passarinhos, os pombos, os cachorros. Andou um pouco no shopping, se embrenhou na multidão.
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Decidiu voltar para casa; os pais deviam estar preocupados.
– Pedro!
Gelou. Esperava estar se confundindo.
– Por que você não foi pra escola? – Era mesmo o professor de sociologia. – Nossa, você está abatido! Logo hoje, né? Parabéns! – André o abraçou. – Me contaram lá na aula.
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Pedro foi andando para trás, cambaleante, então começou a se afastar o mais rápido possível, deixando o professor perplexo.
Ele precisava voltar para casa, mesmo que a duras penas. Foi se amparando no corrimão da escada da portaria.
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A mãe sufocou um berro quando Pedro chegou ao apartamento. Ele se sentia muito cansado.
– Onde você estava?
Ela o abraçou em lágrimas e o levou para o quarto.
– Não aguento, mãe, não aguento...
– Pedro... Sua irmã não iria gostar de te ver assim.
– Era pra ela estar aqui comemorando. Ela se eternizou, eu continuei envelhecendo.
– Ainda não é seu aniversário, Pedro. Você continua tendo 17. Aproveite. Aproveite por ela.
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Pedro encarou a mãe. Parecia que o peso havia aliviado um pouco.
Ainda não era seu aniversário.

quarta-feira, junho 12, 2019

Dona Terezinha

Ninguém podia imaginar o que se escondia por trás daquele sorriso terno.
Qualquer um que subia a colina pela estradinha de terra e batia à porta da cabana pedindo todo tipo de auxílio era recebido por uma expressão afável. O rosto de dona Terezinha prontamente se iluminava e a senhorinha mandava a pessoa entrar. Ela oferecia biscoitos e seu famoso chá de tulipas e, se o outro deixasse, desembestava a falar e podia conversar por horas a fio.
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O visitante costumava se oferecer para ajudar em alguma tarefa, mas ela apenas abanava as mãos nodosas e praticamente empurrava a pessoa para o assento de volta. Irrequieta, nem aparentava a idade que tinha. Apesar de levemente encurvada, seus movimentos eram ágeis. Em sua simplicidade, emanava uma beleza e serenidade que não passava despercebida por ninguém.
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A situação mudava de figura quando a visita não era cordial. Às vezes surgiam forasteiros querendo se aproveitar de uma pobre velhinha que morava sozinha e isolada. Às vezes apareciam pessoas que não queriam nada dela, apenas serem cruéis. Às vezes rondavam tratantes que conheciam os segredos dela.
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Como agora.
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Dona Terezinha espiava pela janela o homem que pensava estar bem escondido. Ela podia adivinhar que tipo de desconhecido era aquele. Aguardar ou tomar a iniciativa? Talvez fosse divertido esperar.
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1, 2, 3, 4, 5... Um impacto na porta. Ele achava mesmo que a soleira não estaria bem protegida?
As paredes estremeceram. O homem tinha mais poder do que ela imaginara.
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Dona Terezinha encostou as mãos no chão de terra e uma grande onda de energia se espalhou por toda a colina. Ela ouviu um berro de surpresa.
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A porta se abriu de supetão com um gesto da mão encarquilhada e a senhora saiu rapidamente. O estranho ainda se levantava, pronto para contra-atacar, quando as plantas começaram a crescer à sua volta.
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Eram tulipas cor-de-rosa, amarelas, vermelhas, brancas, roxas, seus caules e folhas se enroscando nas pernas do desconhecido e o tragando para a terra, o sufocando com seu doce aroma.
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O homem tentou resistir, mas, após alguns minutos de intensa luta, sumiu de vez.
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Agora dona Terezinha já podia fazer mais chá para as visitas.

sábado, maio 25, 2019

Dia de festa

Eu não estava vestido apropriadamente para aquela situação. E aquilo custaria minha vida. Quando minha colega disse que ia casar no cartório e depois fazer só uma “festinha no play”, comemorei: estava um calor dos infernos e não queria mesmo vestir roupa social, esportiva ou sei lá que nome usam agora. Eu não a conhecia tão bem, na verdade nem tinha amigos de verdade na escola, mas o que importava era comer e beber de graça.
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Cheguei à festa de regata, bermuda e sandália, mas estaquei na entrada: todo mundo estava na beca. Corri para trás de uma pilastra e fui me esgueirando até os meus colegas, e praticamente me enfiei debaixo da mesa. Na cara de pau, peguei emprestado o paletó do Daniel e, na mesma hora, comecei a suar.
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Para minha infelicidade, não via bebidas em nenhuma parte, nem mesmo salgadinhos.
Onde eu estava com a cabeça quando decidi…? Meu pensamento travou ao ver Thais se aproximar de mim. A noiva ia ver a calamidade.
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– Carlos, que bom que você che… O que é isso?!
– Foi uma idiotice minha, eu sei…
– Gustavo, vem aqui!
– O que foi meu, amor?
– Olha como o Carlos veio ao NOSSO CASAMENTO!!
– Desculpa, eu já vou embora, deveria ter feito isso logo…
– Não vai, não! – bradou Thais, com os olhos arregalados. – Garçons, peguem esse louco e levem para a cozinha!
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Dois brutamontes apareceram e me arrastaram para fora da mesa enquanto eu me debatia. Thais veio atrás, possessa.
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– Os salgadinhos não estavam muito bons mesmo. Nem mesmo a carne daquela vizinha irritante presta. Podem cozinhar esse daí. Sempre me pareceu apetitoso, mas eu respeitava.
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Olhei ao redor e vi vários membros e partes de corpo descartados. Quando me virei para o pátio em busca de ajuda, Daniel me encarou e, erguendo um olho de sogra, mordeu-o com avidez.
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Fui servido em pastéis leves e crocantes.

quinta-feira, maio 09, 2019

O autógrafo


Finalmente se passaram dois anos!


É tanta coisa boa na Bienal... mas nada pode superar o grande evento de Paulo Brazão. Diego nem sabe como vai se comportar na frente dele. Um escritor que o marcou desde criança e que estará lançando seu novo livro, o último da série que Diego começou a ler bem novo.


Munido de garrafas d'água, biscoitos, sanduíches e carregadores portáteis, Diego vai passar o dia inteiro no fim de mundo do Riocentro. Pegar tudo quanto é marcador, caçar promoções, encontrar amigos, conhecer as novidades.

Mas, antes, de qualquer coisa, precisa se garantir no lançamento. Infla seu colchão e permanece esperando. Conversando com outros fãs ardorosos, garante sua senha e pode aproveitar a Bienal até a hora do evento.

Diego está assistindo a uma palestra quando percebe que precisa correr para a o lançamento. Antes ainda tem que comprar o novo livro para conseguir o autógrafo. Nervoso, levou todos os livros anteriores para mostrar, pensou tanto no encontro com o escritor que não adquiriu o exemplar!
No estande da editora, há uma fila grande. Ele se remexe, impaciente, confere as horas. Como pôde dar essa bobeira? Logo aquele evento! Não vai se perdoar se algo acontecer...
Enfim chega ao caixa, então dispara pelos corredores e alcança o pavilhão praticamente na hora da sua senha. O salão está lotado. Ele é envolvido pelo entusiasmo que reina, tira foto com Paulo Brazão, bate um papo rápido, para que os outros leitores não o fuzilem muito com os olhos.
Ufa, que alívio! Ele sai do salão satisfeito com o autógrafo. Imagina a cara da Letícia quando vir...

Diego congela, apavorado. Esqueceu completamente. A melhor amiga tinha ficado mortificada porque não ia poder ir. Letícia tinha pedido que ele conseguisse um autógrafo do Brazão também para ela. E ele tinha falhado.  Que tipo de amigo era ele?
Desesperado, corre até os organizadores do evento e conta a história. Mas ainda há uma enorme fila e eles devem estar cansados de ouvir mentiras para justificar senhas perdidas.
Tenta recorrer à equipe da editora, mas nada. Compra outro exemplar e resolve esperar o evento terminar para emboscar o autor. Fica rondando o salão, finge que não está interessado, mas os organizadores passam a vigiá-lo.

Ele se esconde num canto, à espreita. A fila está diminuindo, daqui a pouco é o fim. Já está cansado e se apoia na parede de um estande. Tanta correria de um lado para outro...
Diego acorda sobressaltado. Ele cochilou! Brazão foi embora! Vai ter que dar o próprio exemplar autografado para Letícia e ficar sem nenhum. Bom, não tem outro jeito... ou tem?

Abre o livro na folha de rosto e fica analisando o autógrafo. Não parece tão difícil imitar. Primeiro treina num papel diversas vezes. Quando se sente mais seguro, forja a frase de dedicatória, a assinatura. Numa brincadeirinha, ainda inventa um brasão e desenha ao lado. Por um momento, acha que aquilo tudo é errado, mas então pensa que nada mais são que uns rabiscos na folha e o que vale é a intenção.
Respira aliviado e vai aproveitar o resto da Bienal.

***
No dia seguinte, Letícia recebe o livro e dá um forte abraço no amigo, entusiasmada. Diego não está muito empolgado, ainda sente vergonha do que fez. Será que dá para contar a verdade? Mas ela estão tão feliz... Imagina estragar a felicidade dela?
Decide que aquilo é apenas uma besteira, um capricho, e que até fez certo em agradar a amiga naquele momento difícil. A família nem tinha dinheiro para ela poder ir à Bienal, ainda mais que ir até lá e não poder comprar nada seria tortura.

Já em casa, Diego começa a ler o novo livro de Paulo Brazão. Realmente o autor amadureceu junto com seus leitores, o texto é muito mais maduro e Diego não sente a diferença às vezes gritante de quando se lê algo da infância. Isso ele já reparou em obras mais recentes do escritor, que não pertencem à série.
Agora Diego está curioso para saber como a narrativa se desenrola e mergulha na história.

***
Diego está muito triste: seu escritor favorito acabou de falecer. A notícia foi dada de repente, ninguém esperava. Parece que foi um ataque do coração.
Na mesma hora, liga para Letícia para se lamentarem, mas a amiga já está melancólica por outros motivos. A família ainda passa por dificuldades e não sabem como resolver a situação.
– Tem alguma coisa em que eu possa ajudar?
– Não, amigo, infelizmente não... Vamos tentar pensar em alguma solução.
Diego desliga, preocupado.

Ao longo da semana, Letícia não aparece na escola e ele não consegue contato com ela. Não tem com quem conversar sobre o grande destaque que Brazão tem na mídia, as homenagens póstumas. É anunciada uma exposição sobre o autor na ABL, alguns objetos e escritos serão exibidos para o público geral.
Diego pensa em ir à casa da amiga, mas não sabe se é adequado, se será intrometido. Então decide ir à exposição sozinho no dia seguinte.

***
Caramba, reuniram um acervo impressionante! Canetas, óculos, móveis, manuscritos antigos, livros que marcaram a vida do escritor, maquetes de locais significativos...
Fascinado por tudo, ele ouve que vai haver um leilão beneficente e, curioso, resolve ficar para ver como é. Os itens que aparecem são mais objetos do escritor, como documentos, livros, tinteiros, até uma escrivaninha. Os participantes estão animados, disputando as cifras, querendo também ajudar as instituições de caridade.

– De última hora, recebemos um exemplar único, que pode parecer não ter nada de mais – anuncia o pregoeiro –, porém... nenhum outro tem este tipo de assinatura.

Diego se distraiu por um momento, mas agora se vira para ver o que é. O último lançamento de Brazão com o autógrafo que Diego inventou.

– Reparem no traço peculiar e no desenho singular. Nunca se viu esse brasão em outro lugar. Quem dá um lance por esta preciosidade?

Diego está de queixo caído, em choque. Estão leiloando um livro com autógrafo falso? Ninguém fez um exame de grafologia ou algo do tipo?
Os lances se sucedem, a disputa é acirrada, até que um senhor arremata, exultante. Pegando o exemplar, ele o abre e admira a folha de rosto, alisando-a.

Então Diego se dá conta: como aquele livro foi parar ali? Virando-se para a porta do salão, ele vê Letícia com os pais.
A amiga sai correndo na sua direção e lhe dá um abraço apertado.

– Diego! Que bom que você está aqui! – Ela o solta e parece meio envergonhada. – Você... viu que eu leiloei o seu presente? Desculpe, achamos que era uma oportunidade única, eu entrei em contato, aceitaram nos ajudar, até porque eles ganham uma comissão... e agora vamos ter o dinheiro para quitar nossas dívidas! Não é o máximo? E tudo graças a você!

Os pais de Letícia o abraçam e chamam o arrematante do livro para todos tirarem uma foto juntos.

Diego se sente uma farsa.

E nesse dia ele decide se tornar falsário.