sexta-feira, junho 21, 2019

O aniversariante

Tudo começou numa inocente quinta-feira.
Pedro chegou meio sonâmbulo à escola, doido para que a semana terminasse logo. Já na sala, aproveitou que o professor ainda não tinha chegado e abaixou a cabeça sobre a carteira para tirar uma soneca. Assim, não conseguiu ouvir as risadinhas em volta. Nem mais nada.
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– Pedro Tavares!
Pedro levantou a cabeça num estalo, quase caindo da cadeira.
– Você acha que aqui é lugar de dormir? – perguntou Eunice.
– D-desculpe, professora...
– Dá um desconto, professora, ontem foi aniversário dele, ele aproveitou até tarde com a família – interveio Marcelino.
– Ah, parabéns! – exclamou Eunice. – Mas isso não é motivo para tirar cochilos.
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Pedro assentiu mecanicamente e olhou para Marcelino, que apenas respondeu com um sorrisinho.
As aulas continuaram num marasmo e Pedro foi para casa. Ainda não dava para perceber o que tinha se iniciado.
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Mais um dia de escola e ele estava um pouco mais animado, pois aula de Português era sempre bacana. Quando a professora chegou à sala, a turma inteira começou a bater palmas e o garoto foi no embalo, sem entender o que estava acontecendo.
Quando percebeu, todos cantavam parabéns. Putz, tinha esquecido de alguém...
Os gritos de "Pedro! Pedro! Pedro!" ecoaram pela sala e vários colegas vieram cumprimentá-lo, além da professora.
Por que essa fixação agora com seu aniversário? Ele não achava a menor graça naquilo.
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Pior que fim de semana ia ter festa do priminho e ouviria mais cantoria. Mas tudo bem, não seria para ele.
No sábado, Pedro só pensava nos salgadinhos e docinhos com que iria encher a barriga. Mas primeiro precisava cumprimentar todos os parentes...
– Pedrão!! Cada vez mais bonito! Só tem que dar um jeito nesse cabelo branco, arranca o fio! Senão perde a juventude.
Tio Valdo sempre gostava de debochar e Pedro dava um sorrisinho amarelo para não magoar.
Agora queria mais era se empanturrar.
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Logo antes de deitar, estava escovando os dentes e quase se engasgou com a pasta.
Dois fios brancos espetavam na sua cabeleira. Afobado, pegou uma pinça da gaveta da mãe e arrancou aquilo. Que doideira.
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Na segunda, já tinha até se esquecido dos fios. Enfrentar a aula de física é que seria dureza. Na carteira onde costumava sentar, encontrou um embrulho espalhafatoso.
– Bom dia, turma. – Chegou José Fernando. – O que é isso, Pedro? É seu aniversário hoje?
O grupinho da farra bateu palmas e o professor o cumprimentou.
– Olha, eu tinha comprado um livro, mas acho que pode ser pra você. Que tal?
Pedro aceitou, mas nem olhou para o livro. Ele queria sair dali. Guardou-o na mochila com o embrulho e focou na aula como nunca antes.
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Em casa, resolveu ver o que ganhara. No embrulho, nada, apenas palhaçada. E o livro era O curioso caso de Benjamin Button. Nunca tinha ouvido falar. Leu a sinopse e logo se interessou.
O livro era perturbador, mas o atraía. Quando deu por si, no meio da leitura, a barriga roncava e resolveu comer alguma coisa. 
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Dois dias depois, tudo parecia ter se acalmado, mas então Pedro foi recepcionado com um bolo. Luis Guilherme acendeu a vela e a professora de espanhol acompanhou a cantoria.
Pedro estava cada vez mais incomodado em ser o centro das atenções. Porém, nem podia imaginar como a situação se tornaria mais desagradável.
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Arrumando-se para a escola em mais um dia, imaginando que tipo de "surpresa" lhe reservavam, ele quase gritou diante do espelho. O que tinha acontecido com sua pele? Ele nunca havia reparado naquelas rugas. Seria de tanto contrair o rosto em suas palhaçadas?
Passou as mãos pelas bochechas, pela testa, e resolveu catar na gaveta da mãe um tipo de "creme rejuvenescedor".
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Não queria ir para o colégio. Aqueles parabéns já estavam mexendo com a cabeça dele.
Saiu para arejar a mente e foi andar na praça sem avisar aos pais.
Precisava passar o tempo. Ficou contemplando o fluxo de pessoas, os passarinhos, os pombos, os cachorros. Andou um pouco no shopping, se embrenhou na multidão.
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Decidiu voltar para casa; os pais deviam estar preocupados.
– Pedro!
Gelou. Esperava estar se confundindo.
– Por que você não foi pra escola? – Era mesmo o professor de sociologia. – Nossa, você está abatido! Logo hoje, né? Parabéns! – André o abraçou. – Me contaram lá na aula.
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Pedro foi andando para trás, cambaleante, então começou a se afastar o mais rápido possível, deixando o professor perplexo.
Ele precisava voltar para casa, mesmo que a duras penas. Foi se amparando no corrimão da escada da portaria.
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A mãe sufocou um berro quando Pedro chegou ao apartamento. Ele se sentia muito cansado.
– Onde você estava?
Ela o abraçou em lágrimas e o levou para o quarto.
– Não aguento, mãe, não aguento...
– Pedro... Sua irmã não iria gostar de te ver assim.
– Era pra ela estar aqui comemorando. Ela se eternizou, eu continuei envelhecendo.
– Ainda não é seu aniversário, Pedro. Você continua tendo 17. Aproveite. Aproveite por ela.
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Pedro encarou a mãe. Parecia que o peso havia aliviado um pouco.
Ainda não era seu aniversário.

quarta-feira, junho 12, 2019

Dona Terezinha

Ninguém podia imaginar o que se escondia por trás daquele sorriso terno.
Qualquer um que subia a colina pela estradinha de terra e batia à porta da cabana pedindo todo tipo de auxílio era recebido por uma expressão afável. O rosto de dona Terezinha prontamente se iluminava e a senhorinha mandava a pessoa entrar. Ela oferecia biscoitos e seu famoso chá de tulipas e, se o outro deixasse, desembestava a falar e podia conversar por horas a fio.
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O visitante costumava se oferecer para ajudar em alguma tarefa, mas ela apenas abanava as mãos nodosas e praticamente empurrava a pessoa para o assento de volta. Irrequieta, nem aparentava a idade que tinha. Apesar de levemente encurvada, seus movimentos eram ágeis. Em sua simplicidade, emanava uma beleza e serenidade que não passava despercebida por ninguém.
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A situação mudava de figura quando a visita não era cordial. Às vezes surgiam forasteiros querendo se aproveitar de uma pobre velhinha que morava sozinha e isolada. Às vezes apareciam pessoas que não queriam nada dela, apenas serem cruéis. Às vezes rondavam tratantes que conheciam os segredos dela.
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Como agora.
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Dona Terezinha espiava pela janela o homem que pensava estar bem escondido. Ela podia adivinhar que tipo de desconhecido era aquele. Aguardar ou tomar a iniciativa? Talvez fosse divertido esperar.
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1, 2, 3, 4, 5... Um impacto na porta. Ele achava mesmo que a soleira não estaria bem protegida?
As paredes estremeceram. O homem tinha mais poder do que ela imaginara.
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Dona Terezinha encostou as mãos no chão de terra e uma grande onda de energia se espalhou por toda a colina. Ela ouviu um berro de surpresa.
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A porta se abriu de supetão com um gesto da mão encarquilhada e a senhora saiu rapidamente. O estranho ainda se levantava, pronto para contra-atacar, quando as plantas começaram a crescer à sua volta.
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Eram tulipas cor-de-rosa, amarelas, vermelhas, brancas, roxas, seus caules e folhas se enroscando nas pernas do desconhecido e o tragando para a terra, o sufocando com seu doce aroma.
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O homem tentou resistir, mas, após alguns minutos de intensa luta, sumiu de vez.
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Agora dona Terezinha já podia fazer mais chá para as visitas.