sábado, julho 27, 2019

Noir

Ela parecia estar fora de vista. Eu me esgueirava pelos becos em meio à penumbra. O cheiro de gordura, fumaça e suor já me embrulhava o estômago.
Mas eu não podia perder o foco: ela estava atrás de mim, implacável.

Avistei a porta dos fundos de um bar, que dava para o lugar que eles chamavam de cozinha, de onde saía aquela comida nojenta. Me abriguei lá, pensando quanto tempo ainda tinha antes de ela me alcançar.

Podia sentir sua aproximação… Lá estava. Pela brecha, a vi passar, a arma na mão.
Talvez não desconfiasse se eu me metesse na latrina mais adiante. Ou se me jogasse dentro da caçamba de lixo.

Aguardei, suando frio. A qualquer momento ela iria voltar.

Num rompante, decidi que era hora. Atravessei a porta e saí correndo para a latrina.
Mas fiz a besteira de olhar para trás.

Ela pareceu se materializar das sombras e disparou a arma.
Fui atingido de forma certeira e desabei na sarjeta.

– Por favor, não me mate!

– Pedro, você quer parar com essa palhaçada? Já basta ter quebrado o vidro da janela, ainda fica fugindo de mim pela casa como se estivesse num videogame. Vai levar muito mais!


Minha mãe pegou o chinelo de volta e eu vi que era meu fim.

sábado, julho 13, 2019

Lagarteando


– Manhê, pega a toalha pra mim?
Lucas queria dar uma de gente grande e tomar banho sozinho, mas tinha esquecido justo a toalha.
A postos dentro do boxe, abriu a torneira e deixou que a água escorresse por seu corpo. Fechou os olhos e aproveitou a ducha caindo no rosto até que ouviu uma pancada no vidro.
Tá aí, cabeça de vento. Quer ajuda?
Tá tudo certo. – Ele levantou o polegar.
A mãe assentiu, mas sem parecer muito convencida, e saiu do banheiro.

Não era tão difícil tomar banho sozinho, ora. Começou a se ensaboar. Já ia tirando a espuma quando viu um movimento pelo canto do olho.
Olhou para o lado e congelou.
Aaaaahhhhh!!!!
Lucas saltou para fora do boxe com a água ainda ligada, escorregou e acabou levando um belo tombo.

Que foi, criatura? Apareceu um alien aí?
Tem um filhote de crocodilo no boxe!
A mãe revirou os olhos e deu uma espiada.
Você nunca tinha visto uma lagartixa?
Não desse tamanho. Nem tão perto.
Deve ser a mamãe.
Ainda tem os filhotes por aí?
Calma, Lucas, elas não fazem mal. Até comem insetos, ajudam a gente. Essa aí parece simpática.

Lucas bufou. Arriscou uma olhadinha e viu os olhinhos pretos o encarando. Dava a impressão de estar com medo dele. Estavam quites.
Pegou a toalha e preferiu se enxugar de uma vez daquele jeito mesmo. Adeus, lagartixa.
*
Mãe, pode me ajudar no banho?
Lucas nunca ia admitir que estava com medo, nem com a encarada da mãe.
A lagartixa estava em outro canto, de costas. Lucas estava na expectativa dela se virar com seus olhinhos sempre atentos... mas não com uma barata na boca.
Ela é uma fera mesmo!
É bacana, mas nojento. Vamos sair logo.

*
Lucas agora só queria saber de observar o monstrinho. Ficava torcendo para ele aparecer com uma nova presa. O mais engraçado foi quando Biriba descobriu a lagartixa. Sua gata tentou dar um bote, mas o rabo do bichinho se soltou! Ficou se debatendo e deu tempo da Croc se safar.

*
Ela ficou sumida por um tempo, depois surgiu com um rabo novo. Uma fera com superpoderes.
Lucas já se sentia bem protegido no banho, o que podia acontecer com ele?

Às vezes levava susto quando Croc passava em cima do seu pé, às vezes quase pisava nela quando aparecia do nada, no seu reino que era o boxe.

*
Num dia de aguaceiro no banho, Lucas viu a lagartixa crocodilando, parecendo um jacaré a nadar. Ele tentou se controlar, mas não conseguiu, e pegou na Croc como se fosse um brinquedinho.

Ela não fez nenhum movimento de susto. Ele a suspendeu para analisar melhor, mas o animal continuou imóvel, os olhinhos sem brilho.

Não podia ser.

– Manhê!

A mãe não sabia o que tinha acontecido, mas falou que era coisa da natureza, que Croc tinha descansado sem dor, e ainda com o rabo novo.

Lucas fez carinho na cabeça dela e levou o corpinho até um canteiro de flores. Com uma pequena pá, cavou um buraco e a enterrou.
Uma lágrima caiu para marcar o local e Lucas sorriu ao lembrar tudo que tinham vivido.

Adeus, Croc.