domingo, fevereiro 10, 2019

Azar

Luciana estava preocupada com suas dívidas. Precisava urgentemente ir ao banco renegociá-las. Andando pela rua, distraída, não reparou que estava passando bem debaixo de uma escada encostada em um prédio. Quando se deu conta, soltou um gemido alto e botou as mãos no rosto. Foi o suficiente para ser atropelada por um ciclista que tinha perdido a direção.

Ela caiu no chão e o homem logo veio pedir desculpas, largando a bicicleta de lado.
– Cuidado, você pode ser contaminado! – exclamou Luciana.
O ciclista se assustou e resolveu ir embora. Ela sabia que tinha falado uma grande besteira, mas é que estava desnorteada.

Decidiu que era hora de enfrentar o banco, senão sua vida iria de mal a pior. Entrou na agência e foi falar com seu gerente.
– Srta. Gomes, vejo que há um grande montante de dívidas. Mas felizmente hoje foi quitada uma delas.
– Ah, sim, que alívio! Na época eu não acreditava em corrente de internet, achava tudo uma grande bobagem. Não repassei e contraí 10 anos de azar.
– A senhorita demorou um pouco para perceber que as correntes têm consequências. Depois dessa, a senhorita não repassou a dos ETs, a da velhinha assassina, a do macaco golpista... É uma longa lista. Não deve estar sendo fácil sua vida.

– É verdade... Para piorar, derrubei um saleiro, abri guarda-chuva em casa... Nem consegui casar porque varreram meu pé.
– Vejo aqui no sistema que a senhorita também não está em boas condições financeiras, pois coçou a mão para fora da palma e... – o gerente levou uma das mãos à boca e bateu 3 vezes na mesa de madeira com a outra – ... deixou sua bolsa no chão! Tinha muito dinheiro na bolsa?
– Toda a minha féria. – Luciana desviou os olhos, envergonhada. – Será que o senhor conseguiria uma renegociação das minhas dívidas?
– Verei o que é possível.

O homem saiu da sala. Luciana ficou fitando a verruga em seu indicador. Maldita hora que foi apontar uma estrela para uma criança.
De repente, sentiu a orelha queimar. Será que o gerente estava falando mal dela?
Luciana tentou analisar a expressão do funcionário quando ele voltou, mas não chegou a nenhuma conclusão.

– Podemos abater algum período de azar se a senhorita nos trouxer um trevo de quatro folhas, uma ferradura e um pé de coelho. Todos autênticos, não réplicas.
Ela não sabia como conseguiria, mas agora tinha esperança. Só precisava tomar cuidado para que o azar não a atrapalhasse. Agradeceu ao gerente e saiu do banco.

Temerosa, foi andando até em casa, atenta a todo perigo. Quando abriu a porta do apartamento, Luciana gelou: o chinelo da mãe estava virado de cabeça para baixo.
Desesperada, ela saiu correndo e o desvirou. Suspirou de alívio. Sua mãe quase tinha morrido. Mas quem sabe aquela "vitória" era uma pontinha de sorte?

Esperançosa, Luciana se virou muito depressa e acabou tropeçando no sofá, caindo em cima de um espelho de corpo inteiro que ficava preso em uma parede.

Mal teve tempo para pensar nos 7 anos de azar, pois o macaco golpista entrou de supetão pela janela e levou seu celular com todas as correntes recebidas e ainda não encaminhadas.

domingo, fevereiro 03, 2019

Minha mãe

A disputa com minha mãe sempre foi coisa séria. Outro dia ela viu que eu tinha deixado a luz acesa de vários cômodos e gritou:
– Você acha que sou sócia da Light?!

Eu respondi que ela era, sim, e entreguei uns documentos que comprovavam. Ela ficou olhando espantada e verificou que realmente agora fazia parte da sociedade. Demorei, mas consegui concretizar essa, já que lida com burocracias mundanas.

Por outro lado, quando eu não estou encontrando algo, evito ao máximo pedir ajuda pra minha mãe. Ela berra "Se eu for aí e achar, vou esfregar na sua cara!", e ela esfrega de verdade. Muitas vezes é bem dolorido, mas dá pra aguentar.

Porém, ter superpoderes pode ajudar. No dia que eu queria ir a uma festa, ela disse "Você não é todo mundo" e, no mesmo instante, eu absorvi centenas de personalidades e fui trocando de uma pra outra até minha mãe implorar que eu parasse e deixar que eu fosse.

Ou quando ameaça "Leva o guarda-chuva, vai chover" e eu movo as nuvens pra não cair uma gota sequer. Ela fica irritada e diz que não posso gastar meus dons só por birra. Mas não reclama se fala "Reza pra essa mancha sair da roupa", porque eu rezo e sai mesmo.

A parte boa é que ela cumpre "Na volta a gente compra" – ainda que às vezes seja a volta àquele lugar (que pode nunca se realizar) ou talvez a volta de Jesus Cristo.
Só que não dá pra brincar quando ela berra: "Não fica vesgo! Se bater um vento, não volta mais!" Uma vez eu fui desafiar e fiquei zarolho até descobrir uma forma de desvirar.

O mais gostoso foi quando ela se indignou, "Passou um furacão no seu quarto?", e eu tinha mesmo conjurado um minifuracão particular – mas exagerei um pouco e destruí alguns móveis.

O problema das minhas habilidades peculiares aparece quando minha mãe brada: "Me responde outra vez e faço você comer o chinelo!" Já comi uma vez e não recomendo.