domingo, setembro 15, 2019

Self-service

Arroz, feijão, purê, frango, quibe, suflê de queijo, bolinho de peixe... Abel não estava nem aí se algumas coisas não combinavam ou se era exagero: se estava com vontade de comer, ia botando. Pegou uma Coca para acompanhar e pesou o prato.

Agora precisava achar o pessoal do trabalho. Rodou tanto se decidindo onde comer que não sabia mais onde eles estavam sentados. Primeiro ia subir os três degraus até a praça de alimentação... Ah, não, tinha mais um degrau! O corpo foi muito lento para reagir e, quando viu, Abel estava estatelado no chão do shopping, comida espalhada para todo lado, o prato milagrosamente intacto embaixo da bandeja, a lata tinha rolado para um canto.

Dolorido e morrendo de vergonha, ele se levantou olhando em volta. As pessoas o encaravam, algumas se continham para não rir, mas também havia almas caridosas. Meio mancando, recolheu o que pôde com a ajuda de outros. Segurando o prato, a lata e a bandeja, voltou para o restaurante a quilo. Com pena, o gerente deixou que ele colocasse comida de novo sem pagar. Abel pegou o que viu pela frente primeiro, sem se preocupar em repetir os alimentos de antes.

Algumas pessoas ainda o olhavam como se ele fosse um ET.
"Queria muito que isso não tivesse acontecido...", pensou Abel.
Meio zonzo, prestou toda a atenção nos degraus e atravessou a praça de alimentação. Pelo menos já não sentia dor.
Enfim avistou seus colegas. Não ia contar nada a eles, ainda estava com vergonha. Sentou à mesa e, quando foi comer... Ué, ele não tinha pegado suflê desta vez. Nem quibe... Mas o prato estava exatamente igual ao de antes da queda. Aliás, a bandeja também, laranja, e não azul.

Voltou ao restaurante como se para agradecer de novo pela bondade, mas o gerente não entendeu do que ele estava falando.
O seu desejo tinha provocado aquilo? Imagina se pudesse retroceder e desfazer cada besteira, arrepender-se e voltar atrás?
Especialmente aquela vez em que recusara a oferta de publicarem um livro seu por pura insegurança. Agora queria muito ter aceitado...

Então veio novamente a vertigem. E o agente apertava sua mão.
– Parabéns, vamos fazer do seu livro um sucesso.
Abel deu um sorrisinho, ainda atordoado.
Quando já estava sozinho, começou a cogitar se deveria tentar outras hipóteses, realidades também... Mas não, não podia ficar pulando de uma coisa para outra como um doido. Precisava focar numa e ver se dava certo.

***
No dia do lançamento do livro, Abel estava muito nervoso. Não tinha a mínima ideia do que as pessoas iam achar da obra.
Chegou cedo à livraria e ficou esperando. Desde o início de sua nova vida, tinha se forçado a não pensar em desejos, para não "viajar" sem querer, até porque algumas vontades eram meras bobagens.

Os leitores começaram a chegar e, quando viu, Abel estava com um bom público. Ele estremeceu ao avistar Jean Dias no canto, conversando. Era um grande crítico literário e tinha recebido um exemplar antecipadamente, pois o agente esperava que ele fizesse uma resenha e alavancasse as vendas.

Jean não veio pedir seu autógrafo, então, no fim da sessão, Abel tomou coragem para perguntar a ele sua opinião.
– Quer que eu seja sincero? Confesso que não gostei. O livro poderia ser bem menor, algumas partes se arrastam muito e o fim é muito acelerado, não fecha bem... Desculpe. Se preferir, não faço a resenha.
– Caramba, que pena... Queria muito que você tivesse gostado.
– Eu gostei do seu livro! Inclusive, pensei em escrever uma resenha. O que acha?
Abel ficou estarrecido. Seu desejo não podia alterar outras pessoas.
– Eu... eu acho ótimo.
– Parabéns pela obra!
Jean apertou sua mão e foi embora.
Abel ainda precisava digerir aquela novidade. Alegou uma dor de cabeça e foi para casa dormir.

***
Alguns dias depois, ao acordar, Abel fitou seu livro no criado-mudo e resolveu fazer algo que já deveria ter feito: relembrar a própria história. Tinha escrito havia tanto tempo que não se recordava dos detalhes.

No meio da leitura, até concordou com um dos Jean Dias: alguns trechos eram longos demais, inclusive banais, como um almoço no shopping, um protagonista que conseguia publicar sua obra e recebia elogios de um crítico famoso... Exatamente como acontecera com Abel... A diferença é que, no livro, o crítico o convidava para um almoço. Nossa, imagina visitar a casa do Jean Dias! Queria muito conhecê-la.

Surgiu a vertigem e ele apareceu na sala de Jean.
– ... e acho que você tem futuro, sabe?
O crítico o encarou, à espera de uma resposta. Abel ainda estava com cara de paspalho e só conseguiu fazer sim com a cabeça.
Passou o almoço todo desnorteado. Aproveitou a oportunidade ao máximo e voltou para casa, sem ter com quem falar. Não podia deixar de perceber que suas amizades não eram as mesmas, sua trajetória havia moldado outras afinidades. A família nunca fora próxima mesmo.

Agora lhe restava se dedicar ao novo livro que a editora já esperava. Ou talvez terminar de reler sua história em busca de ideias...
Abel ainda refletia sobre como tinha obtido aquele poder. Em que momento tudo começara? 
Lendo sua história, ele descobriu, mas não sabia se tinha coragem de fazer aquilo.

***
De noite, Abel ainda se perguntava se valia a pena seguir o livro, mas era o único jeito de manter sua nova vida. 
Ele teria que voltar no tempo, justamente para o momento do almoço.

Abel formulou o desejo, sentiu a vertigem e, de repente, lá estava no shopping. Olhou ao redor, nervoso. Não estava encontrando. Então, avistou a si mesmo servindo-se no restaurante. Com a bandeja laranja. Sabia o que precisava fazer agora.

Correu para perto do outro Abel, mas hesitou. O pensamento queria fluir por sua mente. Queria muito que o seu outro eu tivesse o poder de alterar o próprio passado. Mas não qualquer acontecimento: só o que estivesse no seu livro.

Estava feito. O outro Abel se encaminhou para os degraus e, mais uma vez, caiu de forma vergonhosa. O Abel do futuro quase sentiu uma pontada de dor.

Olhou ao longe e viu seus antigos colegas de trabalho. Deu até saudade. Tinham sorte de não saber o que ainda viria pela frente em suas vidas.

Voltou-se para seu outro eu a tempo do momento crucial: a realidade se borrou e, quando tudo ficou nítido, a bandeja estava de novo laranja.
Não havia mais o que temer. 

Então o Abel do futuro foi tomado por um impulso. Saiu correndo.
Já nos degraus, derrubou seu antigo eu e disparou para longe.
Ele não iria perceber a mudança da realidade.

Em meio à corrida, o Abel consciente foi se desmaterializando até sumir.