quarta-feira, maio 27, 2020

Bandeiras

– BRAVO! BRAVÍSSIMO!

Léo dá um pulo na cadeira quando o homem entra aos berros no estande. Ele parece um barril e tem até dificuldade para passar pela porta. Que raios é aquilo?

Para seu azar, o senhor vem bem na sua direção, os olhos brilhando. Senta-se com estrondo na cadeira à frente de Léo.


– Quero comprar um apartamento, o mais caro que vocês tiverem!

Léo mexe a boca como um peixe fora d’água. Nem nos seus melhores sonhos isso aconteceria. Isso só se via em filmes, o cara excêntrico que quer esbanjar dinheiro.


– M-mas é claro, senhor. Desculpe, qual é o seu nome?

– Miguel Ângelo. Mas pode me chamar apenas de Miguel.

– Pois bem, senhor Miguel, vou lhe apresentar as características…

– Não é preciso. Confio na qualidade. Com aquele movimento perfeito de bandeira…

– Perdão, senhor? – Léo pestaneja.

– Não é possível que você não tenha reparado. Venha cá.


O homem se levanta e praticamente arrasta o corretor pelo braço.

– Veja só. – Ele aponta para as mulheres balançando bandeiras do lado de fora.

– Humm, sim, foram contratadas para chamar atenção para o empreendimento…

– Ah, vocês não sabem a mina de ouro que têm em mãos. Olhe bem o movimento ondulante das bandeiras. É a proporção áurea! A sequência de Fibonacci! O número phi!


O homem esmigalha o braço de Léo em sua euforia. O corretor não sabe o que fazer além de concordar. Está quase abrindo mão de sua comissão. Quase.

– É maravilhoso mesmo, senhor. Obrigado por me abrir os olhos.

– Não vejo a hora de morar neste condomínio… Para quando está prevista a entrega mesmo?

– Janeiro de 2021.

– Imagine poder admirar todo dia essa proporção áurea! Queria muito saber quem treinou essa ondulação…

– Ahn… senhor?

– Sim? – responde o homem, sem conseguir despregar os olhos do lado de fora.

– Essas moças não vão continuar aí depois do fim da obra. Aliás, elas devem ir embora bem antes, quando todos os apartamentos forem vendidos…

– Mas como isso é possível?? – O homem se vira, rubro. – Eu estou comprando só pela sequência de Fibonacci!

– Senhor, mil perdões, posso tentar ver se haverá alguma bandeira tremulando dentro do condomínio…

– Não ouse tripudiar da arte! Por que ninguém compreende a verdadeira beleza da vida?


O homem sai pisando duro, quase arrancando o batente do estande.

Léo fica olhando abobalhado para as bandeiras ondulantes. De fato é impressionante a sincronia das moças… Será que há algum significado oculto?


Ele sacode a cabeça, voltando à realidade. O Solar Da Vinci precisa do seu trabalho.

segunda-feira, maio 18, 2020

Salinas

O coração de Letícia está acelerado. Ela até erra o botão na primeira vez, mas depois clica certo. A página do SiSU carrega lentamente, sua internet não ajuda nem um pouco. Tudo que ela quer saber é se conseguiu a vaga em medicina na Universidade Estadual de Montes Claros. Então lá aparecem seu nome, suas notas e sua aprovação… para o curso  tecnológico de produção de cachaça.


Letícia pisca os olhos, atônita. Ela relê seus dados para se certificar de que entrou no próprio cadastro. Está tudo correto. E ela está apta a ingressar no Instituto Federal do Norte de Minas Gerais, em Salinas.

Solta um suspiro trêmulo. Ela nem se inscreveu para medicina nesse instituto, não faz sentido.


Resolve sair e fazer login de novo. Mais uma vez a lentidão e mais uma vez aquela sandice. Checa o registro dos últimos acessos e percebe que alguém invadiu seu cadastro, pois não entrou na madrugada daquele dia.

Não consegue acreditar que aquilo aconteceu. E por que logo ela? Por que hackers a teriam escolhido para essa brincadeira de mau gosto?

O jeito é reclamar ao MEC e torcer que revejam sua situação. Fica tão desanimada que decide dormir logo. O dia seguinte vai ser tenso.


****

Apesar de toda a apreensão, acaba acordando tarde. Mexendo no celular ainda na cama, descobre que não foi a única vítima dos hackers: diversas pessoas relatam mudanças de curso, às vezes até de estado. Pesquisa como recorrer ao ministério e segue todo o procedimento. Agora é esperar.


****

O MEC não quis admitir as falhas na segurança do sistema e levantou suspeitas sobre os candidatos. Os pais de Letícia resolvem entrar na Justiça, mas ela não tem esperanças com aquele governo.


Começa a se acostumar com a ideia de esperar mais um ano para entrar na universidade. Mais um ano estudando sozinha enquanto seus amigos vão para outros lugares. Afinal, não há nenhuma faculdade em Fruta de Leite. Com tão poucos habitantes e um nome tão exótico… Letícia sonhava há muito tempo conhecer cidades maiores, mas ficaria mais um ano presa ali…


Humm… Se tudo der errado, existe a possibilidade de ela ir para Salinas. Ela já mora mesmo na região turística da cachaça, praticamente respira álcool de pinga. Seria uma desculpa para se mudar, se divertir, então largaria a outra faculdade quando passasse para medicina. Plano perfeito.


****

Letícia está mais tranquila quando recebe a notícia de que seu cadastro não será corrigido. Pelo menos uma parte dos seus sonhos vai se concretizar. Quer dizer, precisa convencer os pais dessa solução, afinal, são diversos gastos envolvidos. Ela promete que vai trabalhar para se bancar também e que tentará vir a Fruta de Leite toda semana, no máximo de 15 em 15 dias.


Travam uma verdadeira guerra, mas no fim os pais cedem. Talvez tenham ficado com medo da ameaça dela de fugir de casa. Pelo menos vai estar ali pertinho, será uma transição enquanto não vai para Montes Claros, mais longe.

“Salinas, aí vou eu!”, pensa ela.


****

Letícia acorda e fica olhando para o teto. Precisa ir trabalhar, mas cadê a disposição? Isso que dá ficar até tarde com os amigos.

Levanta-se preguiçosamente e vai lavar o rosto. Fita seu reflexo no espelho. Quem diria que sua vida mudaria tanto em 5 anos? A mudança de cidade abriu sua mente, suas perspectivas.


Por falta de opção, tinha começado a trabalhar numa produtora de cachaça porque, bem, Salinas praticamente vive disso. Sua função era burocrática, quase uma estagiária, se isso existisse naquela empresa. Ao longo de um ano de estudo e preparo, viu-se muitas vezes alheia à medicina que precisava aprender e cada vez mais interessada pela área que nunca a atraiu em Fruta de Leite. Uma coisa é ouvir falar, outra é estar lá dentro.


A família nunca trabalhou no setor meio que por uma questão puritana, de não se envolver com bebidas alcoólicas, “vícios”, então Letícia não o conhecia de verdade. Por isso foi tão difícil dar a notícia aos pais. A mudança que eles relutavam em aceitar agora seria permanente. Ao menos está mais perto de casa do que se trabalhasse em Montes Claros. Aliás, lá ainda estaria estudando.


Toma o café da manhã e se arruma para o trabalho. Mal acredita em sua sorte. Abre um sorriso e sai de casa.


****

A noite é a hora de arejar a cabeça, descansar do dia cansativo. Letícia gosta de se entreter no computador, mas hoje será um momento diferente. Ela decidiu participar de um sistema revolucionário, ainda em fase de testes e em grande parte mantido em segredo. Por acaso ficou sabendo durante uma conversa de bar numa happy hour.


Pagou pelo acesso ontem e seus dados foram verificados. Entra com um IP anônimo e usa um link criptografado.

O sistema parece meio arcaico ainda, mas o importante é funcionar. Nunca imaginaria que algo avançado como aquilo seria possível tão cedo: viajar para o passado, mas não pessoalmente, e sim por meio do computador.

Através da tecnologia pode acessar qualquer site, programa, rede social de uma época escolhida, do jeito que eram em determinado instante. Ela pagou para poder fazer um acesso por até seis horas.


Está tão radiante com sua nova vida que só pensa em um objetivo: se comunicar com o hacker que trocou sua faculdade e agradecer a ele. Antes de pagar por aquele serviço, Letícia estudou programação, leu todas as notícias possíveis sobre o caso dos hackers do SiSu para entender as brechas e se aproveitar para invadir também o site.


O sistema onde Letícia está permite comunicação com as pessoas do passado, então ela vai poder falar com o outro hacker. Por ser um fato memorável, sabe exatamente a data e o horário em que se deu a mudança de cadastro, então ela se conecta. A tela fica toda preta. Letícia pragueja; não acredita que pagou aquilo tudo para agora travar.


Então a tela volta a acender e lá está sua inscrição de medicina em Montes Claros. 04h20. 04h21. 04h22. Começa um movimento estranho no site. Letícia faz abrir uma janela e escreve: “Olá, hacker!”


O movimento cessa. Letícia o assustou. Ela não quer que ele vá embora.

“Calma, eu só vim te agradecer.”

Uma frase surge abaixo da sua mensagem: “Quem é vc? Agradecer pelo quê?”

É claro que ele não tinha como saber. “Vc veio trocar minha faculdade. Sem querer, vc fez muito bem a mim.”


O movimento cessa mais uma vez. Droga.

“Alguém aí?”

“Não foi sem querer.”

“Como assim?”

“Espere um instante.”

O outro cursor se move e, então, aparece uma outra janela, parecendo de vídeo.

– Oi, Letícia.


Letícia se espanta, pois a impressão é de que aquilo não é gravado. Ela escreve: “Como vc faz isso?”

– Tecnologia avançada. – A mulher ri, mas a garota não entende do quê. – Bom saber que você está bem.

“E por que isso importaria?”

– Ah, porque… bem, estou fazendo tudo isto para você ficar bem, sabe?

“Não sei, não.”


– Eu estou muito infeliz como médica. Percebi que cometi um erro, mas não sabia bem o que iria fazer. Até que, numa das visitas aos meus pais, acabei conhecendo a indústria da cachaça e me apaixonei. Você sabe como eles nunca deixaram… a gente conhecer direito.


“Peraí, vc está dizendo que sou eu?”

– Sim, Lelê, eu estava angustiada, pesquisei e descobri que o curso de produção de cachaça nem existe mais. E seria muito difícil dar uma guinada dessas a esta altura, vinte anos depois do vestibular… Mas fiquei sabendo do sistema para hackear o passado. É a minha oportunidade.


Silêncio. Nada escrito.

“Então eu mesma que vou trocar o curso no futuro?”

– Sim. Você quer isso mesmo?

“Quero. Por favor.”

– Que tal você mesma trocar agora?


A garota olha para o relógio do computador: 04h34. Quase na hora em que o hacker fez a substituição.

“OK.”

– Na hora em que você confirmar a troca, eu vou deixar de existir.


Letícia assente, apesar de a mulher não poder vê-la.

Ela troca o curso e olha para si mesma num possível futuro.

– Obrigada.


Letícia aperta o botão e o vídeo some para todo o sempre.