domingo, março 24, 2019

Engano

A: Alô?
B: Alô, o Eduardo está?
A: Não tem ninguém com esse nome.
B: Que estranho... Eu anotei o número direito.
A: Desculpe, mas quem está falando é o Godofredo.
B: Sim, sou eu.
A: Não, você não entendeu: meu nome é Godofredo.
B: Não é possível! O meu também. E nem é um nome comum.
A: Pois é, desculpe, mas sinceramente, eu não gosto. Meu pai gosta tanto que quis duplicar o nome dele...
B: Espera um instante... Seu pai se chama Godofredo? Meu pai também teve essa ideia de jerico.
A: Hahaha Só falta você falar que nasceu em 4 de março de 1975!
B: ...
A: Alô, você ainda está aí?
B: Eu nasci exatamente nesse dia.
A: Engraçado, sua voz parece de alguém jovem, tipo 20 anos.
B: Ahn... Isso mesmo. 1975, certo?
A: Na verdade, seria 1995. Eu tenho 40.
B: Xará, me desculpe, mas acho que você não está bem.
A: Interessante, interessante... O que a dona Armínia vai achar disso?
B: Cara, o que você fez com o meu telefone? Fez alguma conexão para me forçar a te ligar e passar algum trote? Investigou minha vida?
A: Gente, quantas possibilidades... Godofredo, me escute: abandona essa faculdade de Direito. Não tem nada a ver comi... com você.
B: Vou desligar agora, seu maluco! Eu...
A: Por favor, eu sei que... você sonha ser astrofísico. Mas ninguém te dá uma força. Aqui no Brasil não incentivam ciência, pesquisa...
B: Como você sabe disso?
A: É complicado explicar... Mas diga que vai pensar nisso. E dar mais uma chance pra Telminha.
B: Aí você força a barra!
A: Vai por mim: ela não sabia de nada. Conversa com o Eduardo.
B: É o que eu queria fazer, né? Mas você se intrometeu.
A: Mais ou menos... Eu comprei a casa dele.
B: Por que você não falou isso desde o começo, cara? Me dá o número novo dele.
A: Desliga e liga de novo. Aí você pergunta pra ele sobre a Telminha. Pressiona o cara, ele vai confessar.
B: Confessar o quê? O que você sabe que eu não sei?
A: Hehe Você nem imagina... Mas promete pensar na astrofísica?
B: Hum, vou ver.
A: Por favor. Você vai fazer um bem danado pra mim.
B: Beleza. É melhor não contrariar maluco.
A: Um abraço! E tenha um futuro brilhante.

segunda-feira, março 18, 2019

O grande dia

Está chegando o grande dia, já é amanhã. André está ansioso para seus 30 anos. Sabe que, na prática, não faz diferença nenhuma: o que iria mudar de meia-noite para meia-noite e um segundo? Ou mesmo ao transpor a barreira de 8h49, quando nasceu? Absolutamente nada.

Mas 30 anos é uma idade simbólica, vai se sentir mais adulto. Ele não tem nenhuma neura por não ter casado, tido filho, ainda é novo, nem a falta de namorada o incomoda.

Como seu aniversário cai domingo, ele não quis esperar até o próximo sábado para comemorar. Domingo é um dia ruim de marcar alguma coisa, então combinou com os amigos e alguns familiares de sair na véspera da data. Tremenda baboseira isso de "ai, aniversário antes não pode, dá azar, você comemora uma coisa que nem aconteceu, pode morrer". Pessoal anda meio pessimista, hein?

Quando chega ao restaurante, Gustavo, Guilherme e Suelen já estão lá. Ele abraça o amigo e os irmãos. Que comecem os trabalhos!
– Hoje é que acaba o horário de verão, né? – lembra Gustavo no meio da noite. – Vamos ganhar 1 horinha pra beber mais!
– Putz, esqueci completamente – responde André. – Sacanagem, vai demorar 1 hora a mais pra chegar meu aniversário de verdade.
– Deixa de ser reclamão e aproveita! – grita Suelen.
André dá um sorriso a contragosto e vira mais um chope.

Mais perto do fim do dia, eles começam a conversar sobre viagens, lugares que gostariam de conhecer, sonhos... Estão falando sobre destinos exóticos, como a Tailândia, quando Guilherme anuncia:
– Pessoal, chegou a hora de retardar o aniversário do nosso amigo e irmão! Vamos juntos como combinamos!
André vê que todo mundo tem relógios de pulso, alguns obviamente trazidos apenas para a ocasião.
– Todos a postos? 1... 2... 3... já!

Nesse instante, os outros parecem se calar. André olha ao redor e sente uma espécie de vibração. Então seus ouvidos estalam, como se tivesse mudado de pressão, e a conversa é retomada. Foram só alguns segundos, mas muito estranhos.

– Eu estava pensando em viajar para Gramado... – diz Suelen. – Vocês já foram?
– Você perguntou isso hoje mesmo, maninha – retruca André. – Eu fico mais velho e você é que tem amnésia?
– Não perguntei nada.
André faz menção de responder, mas deixa pra lá e eles seguem novo rumo na conversa.

E enfim se aproxima o grande dia. Agora será meia-noite de verdade – e o mais importante: meia-noite e um segundo.
– Pessoal, chegou a hora de retardar o aniversário do nosso amigo e irmão! Vamos juntos como combinamos!
– Já atrasamos 1 hora, agora não tem mais jeito – replica André, rindo.
Todos olham para o aniversariante com expressões confusas.
– Cara, acho que você bebeu demais – responde Gustavo. – Isso tudo é medo de não fazer 30 anos?

Atordoado, André vê todos mexerem em seus relógios... e lá estão novamente o silêncio e a vibração de segundos.
– Eu estava pensando em viajar para Gra...
– Eu sei, Gramado, não precisa repetir! O que eu fiz pra merecer isso?
– André, você tá bem? Gramado é tão ruim assim? – Suelen levanta a sobrancelha.
– Passei a odiar fondue e Papai Noel.
– Deixa de ser grosso, André, deixa sua irmã falar – reclama Gustavo.

André não sabe o que fazer. E se...
– Gui – ele interrompe a conversa –, não me sinto bem com esse negócio de atrasar 1 hora, queria tanto que acabasse logo esse horário de verão... Será que daria pra vocês não fazerem o showzinho com os relógios de pulso?
– Peraí, como você sabe? – pergunta o irmão, então completa para a mesa: – Quem foi o traíra?
– Calma, cara, eu ouvi por acaso alguém comentando, ninguém dedurou. Bom, será que vocês podem cancelar?
André dá um sorrisinho amarelo e o irmão concorda, frustrado.

Meia-noite se aproxima e André está mais ansioso do que nunca. Faltando 1 minuto, ele se vira para a entrada e vê uma garota estonteante. Meu Deus, como ele não reparou antes nela? Será que ela aparece mais cedo em outras versões da noite...?

Em pânico, ele se volta para Guilherme, só que já não dá mais tempo: há o silêncio, a vibração, os ouvidos estalando e o relógio na parede ultrapassa meia-noite.

A garota não está mais na entrada.

Completar 30 anos faz muita diferença.