sábado, outubro 26, 2019

Fora do padrão

Bendita hora em que Flávia foi aceitar aquela revisão.
Ela nem tinha perguntado do que se tratava o livro, pois estava precisando de dinheiro, e agora se deparava com aquela não ficção tenebrosa.
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"Entediante" não conseguia descrever o tema do trabalho e a abordagem terrível. Isso sem falar no texto mal escrito. Mas o que a estava tirando do sério era a padronização. Ou melhor, a falta dela.
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O autor parecia que tinha escrito normalmente, depois pensou: quais são todas as maneiras de formatar um texto? Como posso diversificar? E fez uma análise combinatória com bastante criatividade.
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Ela tinha pesadelos com a revisão. Acordava gritando, lembrando-se de uma padronização que tinha deixado passar. Corria até o escritório para anotar antes que esquecesse.
Letras maiúsculas, versaletes, itálicos, negritos, parêntesis dançavam em sua mente, assombrando-a.
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Flávia teve vontade de queimar a prova. Seria bonito vê-la pegando fogo. Ou quem sabe tacar tudo pela janela e contemplá-la sendo levada pelo vento? Colocar num triturador de papel. Jogar no mar. Atirar um balde de tinta em cima.
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Mas isso não iria eliminar o arquivo maldito. Planejou ir à editora com a justificativa de pedir mais prazo (o que precisava mesmo) e, lá, apagar o original. Mas o livro continuaria a existir na casa do autor.
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Fingindo que precisava tirar dúvidas com o autor, conseguiu o e-mail dele. Depois, o telefone. Marcou um encontro na casa dele, alegando que as questões eram muito complicadas e seria mais fácil tratar presencialmente.
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No dia seguinte, Flávia se preparou. Chegou à casa do autor e conseguiu se conter e ser cordial até ele mostrar o arquivo.
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– Essa é a única cópia que vc tem dele?
– Ah, não, eu sempre salvo no HD externo, na nuvem…
– Preciso que vc apague todas agora.
Ele riu.
– O trabalho te ofendeu? Você acha mesmo que vou jogar fora um trabalho de anos… O que você acha que está fazendo?!
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Flávia apontava uma arma para ele.
– Ninguém merece ler um trabalho ruim como o seu. Você escreveu só para infernizar os revisores.
– Calma, você está precisando de ajuda…
– APAGA AGORA! TODOS OS ARQUIVOS!
– Tu-tudo bem.
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Com dificuldade para segurar o mouse firme, o autor foi selecionando uma a uma as cópias.
– Ligue agora para a editora e diga que desistiu de publicar, para apagarem os arquivos.
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O homem ficou paralisado.
– AGORA!
Ele obedeceu, apático e incrédulo.
– Você nunca mais vai procurar uma editora para publicar essa merda. Me entendeu?
Silêncio.
– ME ENTENDEU?
– Sim...
– Não pense que vou esquecer o suplício que você me fez passar. Vou sempre procurar seu nome na internet para ver se cumpriu a promessa. E posso fazer alguma visita aqui.
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Flávia guardou a arma e deu um tchauzinho.
– Trate de procurar outra profissão.
Com um largo sorriso, ela lhe deu as costas e foi embora.