domingo, maio 07, 2006

Paixão aprisionada

Um milagre divino! Ainda que os internautas não tenham nem notado diferença, eu fiquei uma eternidade fora do blog e agora, por um problema, resolvi voltar (estranho, não?). Ia participar do concurso Contos do Rio, organizado por O GLOBO, com o texto abaixo, mas como é normal comigo, acabei deixando para cima da hora, o que até não seria um empecilho se meu conto não acabasse passando do máximo de caracteres permitido no concurso. Tentei colocar nos padrões, mas não deu certo e não deu tempo.
Pois bem, desse jeito acabei conseguindo criar um texto e aproveito para postá-lo aqui (ainda que eu pudesse ter postado meus textos antigos). Má leitura!
***
Finalmente chegara o momento de agir. Ele não mais poderia esperar.
O carcereiro pega seu molho de chaves e, com o prato seguro na outra mão, abre a cela. A comida é colocada de qualquer jeito no chão de concreto e a porta é novamente trancada. Ouvindo os passos do carcereiro ressoarem à distância, o presidiário pega com avidez o prato e leva a colher à boca repetidamente, sofregamente, em uma velocidade surpreendente.
Largando o prato no chão, ele limpa sua longa barba desgrenhada com as costas da mão e emite um sonoro arroto. Tudo bem que a comida era uma porcaria, mas que diferença fazia isso agora? Esperando ainda um pequeno tempo, ele resolve que já está na hora. Apoiando-se na balaustrada da cama miserável, o velho enfia, num rompante, o dedo indicador na goela. O vômito é lançado a seus pés e ele desaba de joelhos, quase em cima da imundície.
Os sons chamam a atenção do carcereiro, que surge à porta e vê o homem ajoelhado, tiritando, uma poça a sua frente.
- Mas que diabos está acontecendo, cara? Vem aqui!
Com um braço apoiando-o, o guarda leva o cambaleante presidiário para um pequeno quarto, ao mesmo tempo em que brada por seu companheiro. Depois de acomodarem mal e mal o preso, os carcereiros decidem limpar-lhe os resquícios do vômito e aquecê-lo com um cobertor. Quando estão contactando um médico, vêem, aliviados, o doente adormecer. Apesar disso, um deles fica de guarda à porta fechada do quarto, enquanto outro vai vigiar os demais delinqüentes.
Dentro do cômodo, o presidiário abre os olhos lentamente. Perscrutando o ambiente, ele se certifica de que está sozinho e se levanta, se livrando do cobertor, que já o fazia suar. Sem o mínimo sinal de debilidade, anda com decisão para perto da janela e começa a trabalhar. Como as instalações ali são precárias e não são fiscalizadas há muito tempo, não havia problema algum em forçar uma passagem. É preciso menos de um minuto para escancarar a janela e pular para fora.
Correndo em desabalada carreira, ele escala o muro e cai do outro lado, rolando pela calçada. Logo se levanta e continua correndo pelas ruas, como se ainda estivesse na flor da idade. Raimundo não iria esperar que o médico chegasse e os carcereiros se dessem conta de sua burrice. Burrice, sim, ainda que eles estivessem há apenas duas semanas naquela prisão, pois a rotatividade no cargo era grande. E o presidiário se valeu disso para enganar mais uma vez a lei. O delegado, que já estava há um bom tempo trabalhando ali, não era muito de aparecer e nem devia se importar com suas fugas.
Agora seu objetivo está bem próximo. Já podia avistá-lo, grandioso, pessoas e mais pessoas a sua volta, um coro de vozes reboando, o êxtase alimentando sua agilidade. Raimundo já sabe para onde deve se dirigir. Embrenhando-se na multidão para despistar seus perseguidores, mas depois se afastando dela, ele chega a um recanto abandonado. Olhando ao redor, o presidiário se aproveita de sua magreza e se espreme por entre as grades. Ainda que saiba o caminho a seguir, Raimundo tem toda a precaução do mundo e espera ansiosamente.
Depois do que parece uma eternidade, um homem atarracado aparece no terreno e abre um sorriso. Os dois se abraçam e querem saber como o outro está, mas isso não demora e logo ambos estão andando por um caminho estreito, em silêncio. Chegam a uma porta depois de certo tempo e Raimundo não consegue se controlar. Passando à frente de seu amigo, ele ultrapassa o portal e se vê em meio à multidão novamente. A porta bate às suas costas e o presidiário, ao olhar para baixo, percebe que chegara no momento glorioso.
O coro à sua volta aumenta mais ainda quando surgem de uma escada vinte e dois homens, acompanhados de crianças, quase todos vestindo a mesma camisa que Raimundo tem no corpo, camisa essa da qual ele se separaria só quando morresse, ainda que estivesse bem gasta e suja. Olhando para os milhares de pessoas aglomeradas naquele grande estádio que era o Maracanã, para a multidão vibrante e multicolorida, ele sente uma paz maravilhosa.
Mas uma paz que não iria durar muito tempo. Logo se inicia um dos jogos mais aguardados pelo presidiário, a final do Estadual entre Flamengo e Fluminense, e Raimundo passa a ser o torcedor que mais sofre, que mais cobra, que não tira os olhos da bolinha que rola e salta de um lado para outro do campo. O espetáculo o hipnotiza e o leva às lágrimas quando seu time, mesmo sob pressão do adversário, abre o placar aos 15 minutos. Raimundo pula mais que todos os outros torcedores, gritando como um alucinado, abraçando todo mundo.
Mas o jogo se mantém equilibrado, os dois times atacando e contra-atacando. O intervalo entre os tempos chega e, só aí, o detento resolve verificar se algum policial está vindo em seu encalço, se ele corre perigo. Porém, tudo parece tranqüilo, como sempre.
O segundo tempo começa e a alegria de Raimundo não dura muito, pois o Fluminense empata em jogada espetacular, calando o presidiário e a torcida ao seu redor. Ainda haveria várias jogadas de tirar o fôlego, bolas na trave e até brigas que resultariam em expulsões para os dois lados, mas nada de gol. Com as unhas bastante roídas, o velho torcedor vê, sem acreditar, o juiz concluir o jogo, levando-o para os pênaltis.
Raimundo se senta e fecha os olhos, sem querer olhar as angustiantes cobranças. Sabendo que o Flamengo iria começar, ele adivinha os acontecimentos pelas reações dos torcedores. Vibra intimamente com os acertos de seu time e os erros do outro, até que não agüenta mais ficar sem ver. Abre os olhos e aguarda a cobrança do Flamengo, que pode garantir o título. Apesar de ser ateu, ele pede a Deus que o jogador acerte.
O atleta corre para a bola e chuta. O goleiro se joga e espalma a bola. Enquanto ele comemora, Raimundo se desespera. Contudo, o inimaginável acontece: a bola faz uma curva e, espetacularmente, sem que o goleiro tenha tempo de reagir, adentra o gol.
O presidiário não se contém e grita tresloucado. Pleno de alegria, ele corre por entre a multidão e sai do estádio, pulando e cantando o hino do Flamengo com toda a força. Agora que seu sonho se realizara, agora que conseguira ver seu tão amado time, ainda mais sendo campeão, ele podia voltar em paz para a prisão, pois estava satisfeito.
Todavia, nem precisa se esforçar muito, pois um policial se aproxima dele e lhe coloca as algemas, pondo-o com facilidade na viatura. Raimundo já se regozija só de pensar que terá novas oportunidades de rever seu time, pois suas fugas, uma vez por mês pelo menos, são infalíveis. Ele só não sabe é que tudo isso é possível porque os carcereiros sempre são preparados pelo delegado para deixar Raimundo fugir e voltar feliz da vida à prisão.
***
Em tempo: o concurso exigia que o conto se passasse no Rio de Janeiro e que tivesse como assunto o futebol. Só queria não estragar a surpresa antes.