segunda-feira, dezembro 24, 2018

Presença

Todo ano era assim, mas Maria não conseguia se acostumar. Deitada no quarto, ela fitava o teto, emburrada. Sem paciência, resolveu andar pelo casarão. Apesar do aquecimento central, estava frio e ela se agasalhara bem.
Passou pelos cômodos, vendo os empregados espalhados. Maria continuou vagando. Quartos, banheiros, salas, dependências, área de serviço, cozinha....

Sua mãe se entretinha preparando a refeição e nem reparou que a filha tinha surgido.
– Mãe? – chamou ela.
A mulher se virou um pouco, sem tirar os olhos totalmente do peru.
– Sim, amor?
– Por que papai nunca tá aqui?
– Ele trabalha muito, querida. Ajuda as pessoas, precisa rodar muito por aí. Acaba concentrando tudo esta noite.
– Na verdade ele também fica o ano todo naquela oficina...
– Mas ele te dá atenção. Hoje é que é mais complicado...

Maria já conhecia aquela conversa. Foi para a sala de estar se aquecer junto à lareira. O pinheirinho no canto do cômodo estava todo enfeitado, brilhando com os pisca-piscas. Uma lindeza. Seu pai fazia questão de que tudo estivesse perfeito; já estar presente...

– Filha, vamos comer?
A mãe estava no portal que ligava as duas salas, com um olhar suplicante. Maria suspirou. O pai não ia se juntar a elas.
A menina foi servida e começou a dar garfadas mecanicamente. Já era tarde para comer, mas esse era o horário normal da ceia. De vez em quando Maria olhava para a porta, esperando que se abrisse. Nada.

Após a refeição, quis se deitar no sofá, se recusando a ir para a cama.
– Quero ver quando papai chegar pra saber por que tanta demora.
A mãe se conformou e foi deitar. O relógio tiquetaqueava e os olhos de Maria começaram a pesar. Ela se forçou, pois não queria perder a chegada do pai. Mas então o sono levou a melhor.

***
– Maria?
A menina abriu os olhos no susto e deu de cara com um casaco felpudo.
– Filha, trouxe seus presentes – falou o pai com voz animada.
Maria viu os embrulhos nas mãos dele, mas fechou a cara.
– Por que você nunca tá aqui?

O pai suspirou e repuxou a barba.
– Bem... Fui agraciado com um dom que pode ser tanto uma bênção quanto um sacrifício. Tem tanta gente precisando por aí e acho que seria egoísmo não ajudar. Preferi fazer tudo numa noite só abençoada do que sair todo dia, sabe? Assim posso passar mais tempo contigo ao longo do ano.

Maria ainda não parecia convencida.
– Veja só esta mensagem que recebi.
A menina pegou o papel que o pai lhe estendeu e começou a ler. Um garoto agradecia ao seu pai pelas visitas e dizia que eram a felicidade das noites quentes.

Maria poderia ter ficado enciumada, mas na verdade seu rosto se iluminou. Num impulso, abraçou o pai.
Noel soltou os embrulhos e a abraçou com um largo sorriso. Agora só precisava entregar o presente do aniversariante.


terça-feira, dezembro 18, 2018

Mensagem cifrada

Cláudia estava cansada após uma semana corrida. Tinha feito apresentações, dado aulas, estudado... Vida de músico não era fácil.
Sentada no metrô com o estojo do violino, ela estava quase dormindo quando começou a soar o apito indicando que a porta ia se fechar. Só que não era o barulho normal: estava tão irregular, desafinado que doía nos ouvidos dela.

– Não é possível!
– Terrível, né? – falou a desconhecida ao seu lado.
Para piorar, Cláudia iria passar por várias estações e o suplício continuaria por um bom tempo.

Quando já pensava em trocar de vagão, a mulher falou:
– Percebeu que não é sempre igual?
– Oi, desculpa?
– O apito varia entre as estações, parece se alternar. E, apesar da irregularidade, tem um certo ritmo...
– Você tem um ouvido bom, hein?
– O ritmo é bem parecido com um código Morse, variando entre sons curtos e longos. Quer ver?

A desconhecida pegou um papel e passou a "transcrever" os apitos. Cláudia resolveu ficar no vagão para ver no que ia dar aquilo.
Após 2 ou 3 estações, a mulher ofegou.
– Meu Deus!
– O que foi?
– A mensagem é "alguém me ajude, fui morta neste vagão".

Cláudia revirou os olhos. Só faltava essa agora, uma doida ao seu lado.
– Desculpe, vou mudar de vagão porque não aguento mais esse barulho.
– Não! – Ela lhe segurou o braço. – Eu me chamo Cecília. Só queria te pedir um favor antes de sair: pode tocar no seu violino um código de resposta?

Gente, era louca de pedra. Olhando para a mão dela no braço, Cláudia preferiu aceitar do que ser agredida.
Cecília escreveu uma mensagem pedindo detalhes sobre o crime e converteu para Morse. Cláudia pediu que ela segurasse o papel enquanto empunhava o violino. Esperou o OK da mulher e pôs-se a tocar. Os passageiros acharam que era alguma apresentação ambulante e franziram a testa diante da música esquisita. Porém, com o tempo, se acostumaram, pensando que fosse um tipo de rap com violino e começaram a bater palmas para acompanhar.

Cecília ficou tensa. Devia achar que a mensagem não ia ser entendida direito pela "morta".
Então acabou o "show". Os passageiros aplaudiram e quiseram dar dinheiro, mas Cláudia recusou, para confusão deles.

E aconteceu o improvável: o apito da porta mudou totalmente. Cecília deu um grito e começou a anotar. Após algumas estações, mostrou o papel: "13/10/17, armário 43 Biblioteca Parque Centro."
Cláudia sentiu um calafrio. Não era possível que Cecília estivesse inventando aquilo tudo. Ou era?
A mulher a fez descer na estação e anotou que trem era aquele e qual era o vagão, pois precisava checar depois se tudo desse certo.

Pegaram o metrô no sentido contrário e desceram na Presidente Vargas. Cecília foi puxando a outra até a Biblioteca Parque, onde pediu a chave do guarda-volume 43. Cláudia não sabia no que queria acreditar.
Cecília girou a chave, abriu a porta... e não havia nada. Cláudia agora não sabia se ficava aliviada ou decepcionada. Inconformada, Cecília meteu a mão no cubículo, tateou pelas paredes e o teto, até que deu um gritinho. Puxou um envelope que estava enfiado num canto.
Como se estivesse numa cerimônia, ela tirou de dentro uma folha escrita:

"Meu nome é Clara Moreira Santos, CPF: 112.700.808-40. Eu estou com medo. Queria deixar isto registrado para caso algo aconteça comigo.
Já há algum tempo, sou agredida por meu marido, Alceu Lopes Santos, CPF: 120.680.430-50. Tentei fazer denúncias, contar a algumas pessoas, mas todos parecem hipnotizados, seduzidos por esse escroto. Ele consegue convencer a todos, colocar todos contra mim, como se eu tivesse algum problema.
Toda vez que relatei algo, ele ficou sabendo e me ameaçou de morte. Talvez ele cumpra mesmo, então resolvi instalar câmeras escondidas na nossa casa para gravar as agressões, as ameaças. Antes que algo pior aconteça, espero resolver essa questão.
Vou agora tentar avisar mais uma pessoa, contar sobre esta carta, para que ela saiba o paradeiro. Em breve tudo terminará."

No fim, Clara tinha assinado.
As duas estavam pálidas. Cecília conseguiu trancar o armário e devolver a chave. Com o envelope guardado na bolsa, foram para a delegacia mais próxima e perguntaram pelo assassinato de Clara, que teria acontecido na data da mensagem em Morse.

– Clara Moreira Santos foi encontrada morta num vagão do metrô – informou a delegada após consultar a base de dados. – A polícia nunca descobriu o assassino.
Cecília entregou o envelope à policial. Ela leu e franziu a testa para as duas.
– Onde encontraram isso?
– Estava no armário da Biblioteca Parque. Encontrei por acaso quando fui tirar minha bolsa – mentiu Cecília. – Pesquisei na internet e vi a data do crime.
– Entendo... Vou solicitar uma análise grafológica da carta e, se confirmada a autenticidade, um mandado judicial para poder averiguar o apartamento de Alceu Lopes. O processo deve demorar um pouco.

As duas assentiram. Agora restava esperar. Elas deixaram seus dados e saíram.
Ainda atordoadas, não falavam nada. Resolveram trocar telefones e apenas se despediram. Preferiram pegar ônibus, fugir do metrô, e cada uma fez seu caminho.

Duas semanas depois, receberam uma ligação da delegada: a polícia encontrara as câmeras e atestara as agressões e ameaças, e inclusive os preparativos do marido para o assassinato, que aparentemente fora cometido após um passeio a dois. No fim, o homem havia confessado o crime e já estava preso.

Cecília e Cláudia marcaram de se encontrar na estação Presidente Vargas. Na plataforma, Cecília conferia seu papel, até que comemorou a chegada de um trem. Correram para um dos vagões e esperaram.

O apito ainda estava soando irregular. As duas se entreolharam, apreensivas. O que tinham feito errado?
Cecília esperou a estação seguinte e começou a anotar. Então abriu um sorriso e mostrou o papel para Cláudia:

"Obrigada"

Na outra estação, o apito já tinha se normalizado.

domingo, dezembro 09, 2018

Bloqueio

Uma página em branco. Sérgio ficou olhando para ela fixamente até seus olhos começarem a secar e arderem. Piscou. Ele não sabia como continuar a história.
Resolveu levantar da cadeira para olhar pela janela. Quem sabe algo na rua lhe desse uma ideia. Sua protagonista tinha acabado de invadir um casarão abandonado com uma amiga, mas Sérgio não sabia o que aconteceria em seguida.

A rua estava vazia como sua cabeça. Francamente, ninguém ajudava um pobre escritor... Teimoso, ele permaneceu parado. Então, pensou ver um cintilar na janela do prédio em frente. Uma mulher apareceu tossindo e uma fumaça saiu pela janela.
– Socorro! – gritou ela, olhando em volta, então avistou Sérgio e começou a acenar. – Socorro, socorro!

Perfeito, o casarão podia pegar fogo quando as meninas estivessem lá dentro. Ele voltou correndo para a cadeira e começou a escrever, mas aí empacou de novo. Só isso? O que poderia instigar os leitores?

Voltou à janela e não viu mais a mulher. Nenhum sinal de bombeiro também. Onde estava o material humano para sua escrita? Será que deveria ligar 193 e interferir no andamento da história? Talvez fosse melhor, para sua protagonista não morrer.

Após o telefonema, esperou impaciente à janela. Foi então que ouviu um baque. Mas veio de dentro do prédio, do lado de fora do apartamento. Espiou pelo olho mágico e a luz do andar estava acesa. Abriu a porta e não viu nada. Olhando pela escada, avistou um vizinho seu, coronel, estatelado num patamar entre dois lances.

O homem o encarou e Sérgio gargalhou com a ideia que lhe veio. E se ela caísse na escada quando estivesse fugindo do fogo? A amiga ficaria desesperada tentando levantá-la... Voltou correndo animado para o computador. Escreveu, escreveu e o bloqueio veio de novo.

Já conseguia ouvir as sirenes dos bombeiros. Mas então soou sua campainha. Abriu sem ver o olho mágico.
– Você é maluco de rir da minha cara?! – O coronel foi entrando com uma arma apontada para Sérgio. – Quero ver rir agora, imbecil.
– O senhor pode esperar só um instantinho?

Deixando o coronel plantado sem entender nada, Sérgio retornou ao computador. Escreveu que, ao fugir, as personagens se depararam com um vigia que cuidava da segurança do casarão. Mas não conseguiu se resolver sobre o que seria melhor acontecer. Voltou à sala.

– Coronel, vá logo em frente. O que pretende fazer?
– Tá fazendo pouco-caso de mim? Acha que não tenho coragem de atirar se continuar debochando?
– Não me entenda mal, mas acho que o senhor nem sabe usar isso aí direito...

Pá! Sérgio sentiu uma dor lancinante na perna e desabou.
– Vê se aprende, otário! – berrou o coronel e saiu.

Sérgio continuou caído, aturdido.
Depois de um tempo, começou a rir. Já tinha a história toda na cabeça.

domingo, dezembro 02, 2018

Histórias de coletivo

"Ônibus" vem do latim e significa "para todos" (o mesmo oni de "onipresente"). Realmente o ônibus é um transporte popular, mas poderiam moderar na informalidade e colocar logo ar na frota toda. Até ônibus com barata eu já peguei, que nojo. Ficar preso numa lata caindo aos pedaços com esses insetos não é uma experiência que recomendo.

Já dormir em ônibus é bom, você encosta a cabeça na janela e espera seu sensor de distância/tempo te avisar que chegou a hora de descer. Pode acontecer de o motorista parar no ponto final, todo mundo sair e nem um miserável te acordar. A sorte é que despertei no susto na hora que o ônibus ia partir para uma nova viagem rumo à Pavuna.

Nem foi um acontecimento constrangedor, né? Ao contrário da vez que estava com tanto sono que cochilei no ombro da completa desconhecida ao meu lado e não soube onde enfiar a cara quando acordei. Ou quando dormi no banco e, numa curva, caí de bunda no corredor. Nada como chamar a atenção de todos os passageiros.

O que ninguém sabe é que gosto de viver perigosamente. Chato pegar ônibus como qualquer pessoa.
Certa vez, esperando num ponto embaixo da passarela 8 da Avenida Brasil, de noite, fui abordado por um cara que queria que eu desse a mochila para ele. Inconformado, falei que não tinha nada que prestasse nela, o que era verdade, mas teria sido melhor dar logo. O homem quis meu celular ou carteira. Eu simplesmente ignorei o cara. Ele ficou tão bolado que fez sinal para um ônibus e foi embora!

Não satisfeito com esse episódio, em outro dia, resolvi mexer no celular no último banco do ônibus. O cara do meu lado falou para eu dar o aparelho. Eu o guardei no bolso e me neguei. Ele perguntou onde eu ia descer, me recusei a responder. Irritado, o cara mandou eu sentar em outro banco. Obedeci na mesma hora, mas passei o resto da viagem com medo de o homem esperar eu descer para me seguir. Felizmente nada aconteceu.

Lição do dia: não aja que nem um doido se você não tem sobrenome Norris. E depois ria das histórias de coletivo quando passarem.