segunda-feira, dezembro 24, 2018

Presença

Todo ano era assim, mas Maria não conseguia se acostumar. Deitada no quarto, ela fitava o teto, emburrada. Sem paciência, resolveu andar pelo casarão. Apesar do aquecimento central, estava frio e ela se agasalhara bem.
Passou pelos cômodos, vendo os empregados espalhados. Maria continuou vagando. Quartos, banheiros, salas, dependências, área de serviço, cozinha....

Sua mãe se entretinha preparando a refeição e nem reparou que a filha tinha surgido.
– Mãe? – chamou ela.
A mulher se virou um pouco, sem tirar os olhos totalmente do peru.
– Sim, amor?
– Por que papai nunca tá aqui?
– Ele trabalha muito, querida. Ajuda as pessoas, precisa rodar muito por aí. Acaba concentrando tudo esta noite.
– Na verdade ele também fica o ano todo naquela oficina...
– Mas ele te dá atenção. Hoje é que é mais complicado...

Maria já conhecia aquela conversa. Foi para a sala de estar se aquecer junto à lareira. O pinheirinho no canto do cômodo estava todo enfeitado, brilhando com os pisca-piscas. Uma lindeza. Seu pai fazia questão de que tudo estivesse perfeito; já estar presente...

– Filha, vamos comer?
A mãe estava no portal que ligava as duas salas, com um olhar suplicante. Maria suspirou. O pai não ia se juntar a elas.
A menina foi servida e começou a dar garfadas mecanicamente. Já era tarde para comer, mas esse era o horário normal da ceia. De vez em quando Maria olhava para a porta, esperando que se abrisse. Nada.

Após a refeição, quis se deitar no sofá, se recusando a ir para a cama.
– Quero ver quando papai chegar pra saber por que tanta demora.
A mãe se conformou e foi deitar. O relógio tiquetaqueava e os olhos de Maria começaram a pesar. Ela se forçou, pois não queria perder a chegada do pai. Mas então o sono levou a melhor.

***
– Maria?
A menina abriu os olhos no susto e deu de cara com um casaco felpudo.
– Filha, trouxe seus presentes – falou o pai com voz animada.
Maria viu os embrulhos nas mãos dele, mas fechou a cara.
– Por que você nunca tá aqui?

O pai suspirou e repuxou a barba.
– Bem... Fui agraciado com um dom que pode ser tanto uma bênção quanto um sacrifício. Tem tanta gente precisando por aí e acho que seria egoísmo não ajudar. Preferi fazer tudo numa noite só abençoada do que sair todo dia, sabe? Assim posso passar mais tempo contigo ao longo do ano.

Maria ainda não parecia convencida.
– Veja só esta mensagem que recebi.
A menina pegou o papel que o pai lhe estendeu e começou a ler. Um garoto agradecia ao seu pai pelas visitas e dizia que eram a felicidade das noites quentes.

Maria poderia ter ficado enciumada, mas na verdade seu rosto se iluminou. Num impulso, abraçou o pai.
Noel soltou os embrulhos e a abraçou com um largo sorriso. Agora só precisava entregar o presente do aniversariante.


terça-feira, dezembro 18, 2018

Mensagem cifrada

Cláudia estava cansada após uma semana corrida. Tinha feito apresentações, dado aulas, estudado... Vida de músico não era fácil.
Sentada no metrô com o estojo do violino, ela estava quase dormindo quando começou a soar o apito indicando que a porta ia se fechar. Só que não era o barulho normal: estava tão irregular, desafinado que doía nos ouvidos dela.

– Não é possível!
– Terrível, né? – falou a desconhecida ao seu lado.
Para piorar, Cláudia iria passar por várias estações e o suplício continuaria por um bom tempo.

Quando já pensava em trocar de vagão, a mulher falou:
– Percebeu que não é sempre igual?
– Oi, desculpa?
– O apito varia entre as estações, parece se alternar. E, apesar da irregularidade, tem um certo ritmo...
– Você tem um ouvido bom, hein?
– O ritmo é bem parecido com um código Morse, variando entre sons curtos e longos. Quer ver?

A desconhecida pegou um papel e passou a "transcrever" os apitos. Cláudia resolveu ficar no vagão para ver no que ia dar aquilo.
Após 2 ou 3 estações, a mulher ofegou.
– Meu Deus!
– O que foi?
– A mensagem é "alguém me ajude, fui morta neste vagão".

Cláudia revirou os olhos. Só faltava essa agora, uma doida ao seu lado.
– Desculpe, vou mudar de vagão porque não aguento mais esse barulho.
– Não! – Ela lhe segurou o braço. – Eu me chamo Cecília. Só queria te pedir um favor antes de sair: pode tocar no seu violino um código de resposta?

Gente, era louca de pedra. Olhando para a mão dela no braço, Cláudia preferiu aceitar do que ser agredida.
Cecília escreveu uma mensagem pedindo detalhes sobre o crime e converteu para Morse. Cláudia pediu que ela segurasse o papel enquanto empunhava o violino. Esperou o OK da mulher e pôs-se a tocar. Os passageiros acharam que era alguma apresentação ambulante e franziram a testa diante da música esquisita. Porém, com o tempo, se acostumaram, pensando que fosse um tipo de rap com violino e começaram a bater palmas para acompanhar.

Cecília ficou tensa. Devia achar que a mensagem não ia ser entendida direito pela "morta".
Então acabou o "show". Os passageiros aplaudiram e quiseram dar dinheiro, mas Cláudia recusou, para confusão deles.

E aconteceu o improvável: o apito da porta mudou totalmente. Cecília deu um grito e começou a anotar. Após algumas estações, mostrou o papel: "13/10/17, armário 43 Biblioteca Parque Centro."
Cláudia sentiu um calafrio. Não era possível que Cecília estivesse inventando aquilo tudo. Ou era?
A mulher a fez descer na estação e anotou que trem era aquele e qual era o vagão, pois precisava checar depois se tudo desse certo.

Pegaram o metrô no sentido contrário e desceram na Presidente Vargas. Cecília foi puxando a outra até a Biblioteca Parque, onde pediu a chave do guarda-volume 43. Cláudia não sabia no que queria acreditar.
Cecília girou a chave, abriu a porta... e não havia nada. Cláudia agora não sabia se ficava aliviada ou decepcionada. Inconformada, Cecília meteu a mão no cubículo, tateou pelas paredes e o teto, até que deu um gritinho. Puxou um envelope que estava enfiado num canto.
Como se estivesse numa cerimônia, ela tirou de dentro uma folha escrita:

"Meu nome é Clara Moreira Santos, CPF: 112.700.808-40. Eu estou com medo. Queria deixar isto registrado para caso algo aconteça comigo.
Já há algum tempo, sou agredida por meu marido, Alceu Lopes Santos, CPF: 120.680.430-50. Tentei fazer denúncias, contar a algumas pessoas, mas todos parecem hipnotizados, seduzidos por esse escroto. Ele consegue convencer a todos, colocar todos contra mim, como se eu tivesse algum problema.
Toda vez que relatei algo, ele ficou sabendo e me ameaçou de morte. Talvez ele cumpra mesmo, então resolvi instalar câmeras escondidas na nossa casa para gravar as agressões, as ameaças. Antes que algo pior aconteça, espero resolver essa questão.
Vou agora tentar avisar mais uma pessoa, contar sobre esta carta, para que ela saiba o paradeiro. Em breve tudo terminará."

No fim, Clara tinha assinado.
As duas estavam pálidas. Cecília conseguiu trancar o armário e devolver a chave. Com o envelope guardado na bolsa, foram para a delegacia mais próxima e perguntaram pelo assassinato de Clara, que teria acontecido na data da mensagem em Morse.

– Clara Moreira Santos foi encontrada morta num vagão do metrô – informou a delegada após consultar a base de dados. – A polícia nunca descobriu o assassino.
Cecília entregou o envelope à policial. Ela leu e franziu a testa para as duas.
– Onde encontraram isso?
– Estava no armário da Biblioteca Parque. Encontrei por acaso quando fui tirar minha bolsa – mentiu Cecília. – Pesquisei na internet e vi a data do crime.
– Entendo... Vou solicitar uma análise grafológica da carta e, se confirmada a autenticidade, um mandado judicial para poder averiguar o apartamento de Alceu Lopes. O processo deve demorar um pouco.

As duas assentiram. Agora restava esperar. Elas deixaram seus dados e saíram.
Ainda atordoadas, não falavam nada. Resolveram trocar telefones e apenas se despediram. Preferiram pegar ônibus, fugir do metrô, e cada uma fez seu caminho.

Duas semanas depois, receberam uma ligação da delegada: a polícia encontrara as câmeras e atestara as agressões e ameaças, e inclusive os preparativos do marido para o assassinato, que aparentemente fora cometido após um passeio a dois. No fim, o homem havia confessado o crime e já estava preso.

Cecília e Cláudia marcaram de se encontrar na estação Presidente Vargas. Na plataforma, Cecília conferia seu papel, até que comemorou a chegada de um trem. Correram para um dos vagões e esperaram.

O apito ainda estava soando irregular. As duas se entreolharam, apreensivas. O que tinham feito errado?
Cecília esperou a estação seguinte e começou a anotar. Então abriu um sorriso e mostrou o papel para Cláudia:

"Obrigada"

Na outra estação, o apito já tinha se normalizado.

domingo, dezembro 09, 2018

Bloqueio

Uma página em branco. Sérgio ficou olhando para ela fixamente até seus olhos começarem a secar e arderem. Piscou. Ele não sabia como continuar a história.
Resolveu levantar da cadeira para olhar pela janela. Quem sabe algo na rua lhe desse uma ideia. Sua protagonista tinha acabado de invadir um casarão abandonado com uma amiga, mas Sérgio não sabia o que aconteceria em seguida.

A rua estava vazia como sua cabeça. Francamente, ninguém ajudava um pobre escritor... Teimoso, ele permaneceu parado. Então, pensou ver um cintilar na janela do prédio em frente. Uma mulher apareceu tossindo e uma fumaça saiu pela janela.
– Socorro! – gritou ela, olhando em volta, então avistou Sérgio e começou a acenar. – Socorro, socorro!

Perfeito, o casarão podia pegar fogo quando as meninas estivessem lá dentro. Ele voltou correndo para a cadeira e começou a escrever, mas aí empacou de novo. Só isso? O que poderia instigar os leitores?

Voltou à janela e não viu mais a mulher. Nenhum sinal de bombeiro também. Onde estava o material humano para sua escrita? Será que deveria ligar 193 e interferir no andamento da história? Talvez fosse melhor, para sua protagonista não morrer.

Após o telefonema, esperou impaciente à janela. Foi então que ouviu um baque. Mas veio de dentro do prédio, do lado de fora do apartamento. Espiou pelo olho mágico e a luz do andar estava acesa. Abriu a porta e não viu nada. Olhando pela escada, avistou um vizinho seu, coronel, estatelado num patamar entre dois lances.

O homem o encarou e Sérgio gargalhou com a ideia que lhe veio. E se ela caísse na escada quando estivesse fugindo do fogo? A amiga ficaria desesperada tentando levantá-la... Voltou correndo animado para o computador. Escreveu, escreveu e o bloqueio veio de novo.

Já conseguia ouvir as sirenes dos bombeiros. Mas então soou sua campainha. Abriu sem ver o olho mágico.
– Você é maluco de rir da minha cara?! – O coronel foi entrando com uma arma apontada para Sérgio. – Quero ver rir agora, imbecil.
– O senhor pode esperar só um instantinho?

Deixando o coronel plantado sem entender nada, Sérgio retornou ao computador. Escreveu que, ao fugir, as personagens se depararam com um vigia que cuidava da segurança do casarão. Mas não conseguiu se resolver sobre o que seria melhor acontecer. Voltou à sala.

– Coronel, vá logo em frente. O que pretende fazer?
– Tá fazendo pouco-caso de mim? Acha que não tenho coragem de atirar se continuar debochando?
– Não me entenda mal, mas acho que o senhor nem sabe usar isso aí direito...

Pá! Sérgio sentiu uma dor lancinante na perna e desabou.
– Vê se aprende, otário! – berrou o coronel e saiu.

Sérgio continuou caído, aturdido.
Depois de um tempo, começou a rir. Já tinha a história toda na cabeça.

domingo, dezembro 02, 2018

Histórias de coletivo

"Ônibus" vem do latim e significa "para todos" (o mesmo oni de "onipresente"). Realmente o ônibus é um transporte popular, mas poderiam moderar na informalidade e colocar logo ar na frota toda. Até ônibus com barata eu já peguei, que nojo. Ficar preso numa lata caindo aos pedaços com esses insetos não é uma experiência que recomendo.

Já dormir em ônibus é bom, você encosta a cabeça na janela e espera seu sensor de distância/tempo te avisar que chegou a hora de descer. Pode acontecer de o motorista parar no ponto final, todo mundo sair e nem um miserável te acordar. A sorte é que despertei no susto na hora que o ônibus ia partir para uma nova viagem rumo à Pavuna.

Nem foi um acontecimento constrangedor, né? Ao contrário da vez que estava com tanto sono que cochilei no ombro da completa desconhecida ao meu lado e não soube onde enfiar a cara quando acordei. Ou quando dormi no banco e, numa curva, caí de bunda no corredor. Nada como chamar a atenção de todos os passageiros.

O que ninguém sabe é que gosto de viver perigosamente. Chato pegar ônibus como qualquer pessoa.
Certa vez, esperando num ponto embaixo da passarela 8 da Avenida Brasil, de noite, fui abordado por um cara que queria que eu desse a mochila para ele. Inconformado, falei que não tinha nada que prestasse nela, o que era verdade, mas teria sido melhor dar logo. O homem quis meu celular ou carteira. Eu simplesmente ignorei o cara. Ele ficou tão bolado que fez sinal para um ônibus e foi embora!

Não satisfeito com esse episódio, em outro dia, resolvi mexer no celular no último banco do ônibus. O cara do meu lado falou para eu dar o aparelho. Eu o guardei no bolso e me neguei. Ele perguntou onde eu ia descer, me recusei a responder. Irritado, o cara mandou eu sentar em outro banco. Obedeci na mesma hora, mas passei o resto da viagem com medo de o homem esperar eu descer para me seguir. Felizmente nada aconteceu.

Lição do dia: não aja que nem um doido se você não tem sobrenome Norris. E depois ria das histórias de coletivo quando passarem.

sábado, novembro 24, 2018

Desfalecendo

Sempre achei engraçada essa palavra, "desfalecer". Como "des" pode significar oposição, desmaiar seria o contrário de morrer. Você perde os sentidos... Acho que está mais perto do falecimento que no lado oposto, né? "Des" também pode ser reforço, intensidade, mas ninguém "morre muito".

Impressionante como eu gosto de divagar. Tudo isso para relembrar as vezes em que desmaiei. Foram só duas, mas memoráveis.

Na primeira ocasião, eu estava participando de um evento católico. O dia estava muito quente e, por causa de um atraso na programação, o lanche teve que ser pulado. Chegou a hora da missa, diversas cadeiras de plásticos dispostas numa quadra esportiva em frente a uma mesa que servia de altar. Durante a cerimônia, em meio ao calor e à fome, comecei a ficar tonto e me inclinei, me apoiando na cadeira da frente.
Seguindo uma lógica absurda, pensei que não iria desmaiar porque isso nunca tinha acontecido comigo. Faz todo o sentido! Não falei nada com a Carla, que estava ao meu lado. A visão começou a escurecer e eu apaguei.
Acordei deitado no chão da quadra, as cadeiras em volta afastadas para me dar espaço, as pessoas me olhando preocupadas, isso tudo durante a missa. Bebi água, fiquei sentado, comunguei, sendo o centro das atenções como gosto muito (só que não).

A segunda vez foi ainda melhor. Há 10 anos eu estagiava numa empresa na Usina, na Tijuca. Era meu primeiro estágio e eu ainda não estava muito acostumado em conciliar a rotina com a faculdade, era meio puxado. Passei um bom tempo sem comer direito, mas não me preocupei porque já iria para casa, na Saens Peña. Peguei o ônibus de integração do metrô no terminal. E depois não lembro de mais nada.
Quando acordei, estava recostado num banco nos fundos do ônibus, que já tinha estacionado no ponto final na praça. Segundo o cobrador ou motorista, eu tinha passado a catraca e então desabei. No meio do corredor.
Por causa dessa queda deselegante, bati com o ombro e até hoje tenho uma pequena lesão. Na época até precisei fazer fisioterapia, porque a articulação ficou frágil e o osso saía e voltava para o lugar. Era uma dor insuportável.
Mas o melhor dessa história é que o cobrador ligou para a minha mãe pelo meu celular (provavelmente eu não o bloqueava) e ela achou que fosse trote, daqueles bandidos. "Tô com seu filho desmaiado aqui no ônibus, preciso que a senhora venha buscá-lo."
Realmente, eu também pensaria que era trote.

sábado, novembro 17, 2018

Provação

Chegou o dia da prova. Luiza estava muito nervosa. Tinha estudado tudo do conteúdo programático, achava que iria se dar bem, mas não tinha jeito: sempre ficava nervosa antes de um concurso.
Acordara bem cedo, se aprontou, arrumou seu material, tomou o café da manhã. Iria sair adiantada para evitar qualquer contratempo.

Quando chegou ao local de prova, um funcionário veio falar com ela:
– Bom dia, senhorita. Implantamos um novo sistema e queria lhe dar as orientações. Pode esperar sentada num banco e confira sua sala num dos monitores espalhados pelo campus. Boa sorte.

Isso era meio doido. Havia tantas pessoas ali, iria demorar um bocado até aparecer o nome dela. Ansiosa, ela nem se sentou. Ficou esperando em pé, vendo os candidatos passarem aos poucos. Nem todos tinham salas definidas. Quando surgiu seu nome, enfim, estava escrito "Remanejamento".
Desesperada, ela foi atrás do funcionário que a atendera.

– Sinto muito, mas a senhorita foi remanejada para outro local de prova.
– O quê?! Mas como isso é possível?
– Provavelmente houve alguma confusão. Deixe-me consultar o novo local...
Ele mexeu num tablet e informou:
– Colégio São Silvestre.
– Mas fica longe!
– Infelizmente não posso ajudar mais.

Luiza não ia contar com a sorte: pediu logo um carro pelo aplicativo e pulou dentro. Mal o veículo estacionou em frente ao colégio, ela saltou e correu para o interior.
Mais monitores. Pelo amor de Deus. Inquieta, esperou seu nome aparecer. Ufa, era ali mesmo, sala 204.

Antes dos elevadores, alguns fiscais estavam fazendo alguma espécie de vistoria. 
– Senhorita, pode me entregar sua bolsa?
Sem ter o que fazer, Luiza entregou. O homem depositou-a numa balança e soou um apito.
– A bolsa está com excesso de peso.
– Mas o que isso interfere na prova?
– São normas da organizadora, não tolerar nada acima desse peso. A não ser que a senhorita tenha pagado uma taxa de excedente previamente. Estava no edital. A senhorita pode se desfazer de algumas coisas para chegar ao peso ou pagar pelo excesso.

Aquilo não podia estar acontecendo. Ela deu uma olhada dentro da bolsa, viu se era possível jogar algo fora. Como a diferença era pequena, deveriam ser poucos pertences. Tudo para o lixo.
O fiscal pesou de novo. Ela prendeu a respiração. Agora estava tudo certo. Furiosa, pegou o elevador. Finalmente encontrou sua sala.

A moça conferiu seu cartão e franziu a testa.
– Senhorita, a sala já está lotada. Acho que alocaram candidatos demais aqui sem poder.
– E o que eu tenho com isso??
– Não há cadeiras sobressalentes. Vejamos... – Ela consultou um tablet. – Há lugar disponível no Instituto Odisseia, aqui mesmo na rua, mais para o fim. – A moça consultou o relógio. – Mas vai precisar se apressar.

Atordoada, Luiza segurou a bolsa junto ao corpo e saiu em disparada pelas escadas. Ela sabia onde era o instituto, não tão perto assim. Não se importava com as pessoas que passavam, esbarrava em algumas, só olhava as fachadas. As pernas começaram a arder, sentia pontadas nas costelas.

O prédio já estava à vista. Ela entrou desabalada, então lembrou que precisava descobrir sua sala. Agarrou um fiscal pela camisa e exigiu que ele consultasse logo no tablet e parasse com aquela frescura de monitor.
Assustado, o homem informou e ela correu para a vistoria. Jogou a bolsa na balança, pegou-a de volta e subiu as escadas.

Sem fôlego, alcançou a sala. A funcionária arregalou os olhos para ela.
Luiza olhou para a sala. Estava vazia.

– Pessoal, chegou a primeira aprovada! – berrou a mulher para o corredor e começou a tocar uma sineta.
Agora foi a vez de Luiza arregalar os olhos. Sem reação, ela foi abraçada pela fiscal.

E assim Luiza passou na seleção da ANAC.

segunda-feira, novembro 12, 2018

A herança

– Boa tarde. Quem fala é a srta. Júlia Pitanga?
– Sim, é ela. Quem gostaria?
– Meu nome é Everardo Nascimento. Sou advogado do seu tio Afonso Bandeira. Lamento informar, mas ele faleceu recentemente.
– Nossa, não tinha notícias dele há algum tempo. É uma pena...
– Sim, sei que a senhorita não tinha tanto contato, mas é a parente mais próxima, por isso foi incluída no testamento.
Júlia não soube o que responder. Ela ia receber uma herança?
– Quando poderíamos nos encontrar para uma conversa? – perguntou o advogado.
Os dois combinaram o encontro para o dia seguinte e Júlia desligou. Ela estava muito ansiosa.

Ao chegar ao escritório de Everardo, se sentou e aguardou, na expectativa.
– O sr. Afonso deixou como bem a casa onde morava, simples, mas bem cuidada – começou o advogado. – E... tem outra coisa, um tanto quanto exótica. Está lá na casa. Gostaria que a senhorita fosse comigo para que eu mostrasse.
Com a pulga atrás da orelha, Júlia aceitou. Foram no carro dele.

A casa até que ficava bem localizada e pareceu simpática. Deram uma olhada nos cômodos e Júlia logo se imaginou morando ali, refazendo sua vida. Mas restava uma dúvida:
– Onde está a tal coisa exótica?
– Ah, sim, vamos para o quintal dos fundos.
Everardo abriu a porta e Júlia saiu. Foi então que viu aquela enormidade.
– É uma tartaruga?
– Na verdade, um jabuti, pois vive na terra. É uma fêmea e se chama Talita. Já tem 90 anos, por isso é tão grande: tem uns 70 centímetros.
– Vou ter que cuidar dela? Não seria melhor mandar para um zoológico, alguém que entenda de jabuti?
– Seu tio deixou claro no testamento que a senhorita só poderia ficar com a casa se cuidasse da jabota.
– Tudo bem, é o jeito...

Nos outros dias ela veria toda a papelada, burocracia. Agora precisava pesquisar o que aquele animal comia. Foi até o mercado perto da casa e comprou os alimentos. Colocou tudo numa bacia e a depositou perto do bicho, junto com uma tigela de água. Talita esticou o pescoço e começou a devorar a refeição com eficiência. Não deixou nada. Ela ia dar trabalho.

Júlia trancou a casa e foi buscar alguns pertences pessoais. Queria passar aquela noite na nova residência, depois falaria com o proprietário que iria sair do apartamento alugado.
Quando voltou para a casa, Talita dormia profundamente, ainda no mesmo lugar. Transmitia uma serenidade... Deu vontade até de dormir. E foi o que Júlia fez.

No dia seguinte, ela acordou no susto. Nossa, já estava muito tarde. Saiu correndo para começar a resolver as questões legais e a encaixotar suas coisas.
Ao retornar, no fim da tarde, se assustou com um movimento na cozinha. Com o coração aos pulos, viu que era Talita, entrando vagarosamente. A jabota passou o focinho pelo chão, como se pedisse algo.
Coitada, tinha ficado o dia inteiro sem comida! Pegou o que tinha sobrado das compras e estendeu para a bichinha. Ela foi comendo direto da mão de Júlia, às vezes quase arrancando-lhe os dedos.
Quando acabaram os legumes, verduras e frutas, as duas ficaram se olhando.

– Você deve estar triste com a morte do tio Afonso, né? Nem dei bola para a sua perda. Desculpa... – Jília esticou a mão, hesitante, e acariciou a cabeça dela. – Eu também acabei de perder meu namorado. Ele não morreu, só me deixou. Mas é tão doloroso, moramos juntos há tanto tempo... – Ela enxugou as lágrimas que caíam. – Eu precisava deixar aquele apartamento, só me trazia lembranças ruins. Esta casa veio na hora certa.

As duas ficaram lado a lado um tempão, em silêncio, até que Talita começou a andar, devagar, e sumiu no quintal.

A partir do dia seguinte, Júlia criou uma rotina de alimentar Talita e conversar com ela. A papelada se resolveu, ela entregou o apartamento, a casa ganhou a sua cara.
E lentamente, a passo de jabuti, ela foi se recuperando.

domingo, novembro 04, 2018

Nestor Brandão


Rafael sempre gostou de morar na Nestor Brandão. Uma rua arborizada, tranquila, mas perto do comércio, das vias principais. Tinha sido uma sorte conseguir apartamento lá.

Certo dia, chegando do trabalho, ele se deparou com uma carta no escaninho de correspondência. Na verdade era uma notificação bem estranha.

– Amor, recebi uma mensagem bizarra da Prefeitura – comentou Rafael ao entrar em casa. – Diz que nossa rua vai mudar de nome para homenagear uma menina que morreu num assalto. Até aí tudo bem. Mas fala que a rua Nestor Brandão agora vai passar a ser em outro bairro e precisamos nos mudar.

– O quê?! Mas isso é uma maluquice!
– Pois é, vou ver isso na Prefeitura amanhã...

No dia seguinte, Rafael conseguiu falar com um atendente depois de muita espera.
– Senhor, é isso mesmo: a rua nova só vai admitir moradores novos, pessoas que não têm imóvel, especialmente familiares vítimas da violência.

– Como podem fazer isso sem consultar os moradores?
– Não se preocupe, senhor, a rua é exatamente igual, só muda o bairro. Não podemos fazer nada, são as regras.

Rafael esbravejou muito, mas em vão. O atendente explicou que, dali a uma semana, um funcionário da Prefeitura mostraria a rua.
Sete dias depois, após o expediente, ele se surpreendeu ao encontrar o funcionário esperando-o próximo à sua rua.

– A visita vai ser agora à noite?
– Sim, senhor, logo que sua esposa chegar.

Olhando para trás do homem, Rafael não reconheceu sua rua. Já não havia tantas árvores, as fachadas pareciam diferentes... Onde estava o canal? Ele balançou a cabeça. Escuridão e vista cansada não eram uma mistura boa.

Mônica chegou e eles pegaram carona com o funcionário. Alcançaram, por fim, a nova rua. Os dois ficaram boquiabertos: era exatamente igual à rua antiga. Nos mínimos detalhes. Todos os prédio idênticos.
Quando entraram no apartamento, perceberam algo surreal: todos os seus móveis já estavam lá, na ordem perfeita do imóvel anterior. Aliás, até as desordens deixadas tinham sido copiadas.

– Como isso é possível?... – falou Mônica.
– Senhores, não poderão mais voltar ao local da antiga moradia. Eu não quis dizer nada antes para poderem ver com os próprios olhos que está tudo como deveria estar. Qualquer dúvida, entrem em contato. – O homem entregou um cartão de visitas e saiu.

Mônica fitou o cartãozinho: "Francisco Wolks - Coordenador de Transposição de Regiões".
– Como podem fazer isso com a gente?

Ainda sem reação, Rafael ligou a TV. O telejornal mostrava um protesto.

– É um absurdo! – gritava uma mulher para uma repórter. – Colocaram nossas casas num lugar distante sem aviso! Agora construíram essas mansões da noite pro dia só porque é bairro rico!

– Senhora, é impossível transportar casas, assim como construir algo assim tão rápido. Vocês moravam mesmo aqui? Têm provas?
– Isso não vai ficar assim, vou buscar justiça!

Mônica virou para o marido com um olhar interrogativo. Rafael quebrou o silêncio, dando de ombros:

– Veja pelo lado bom: estamos num bairro melhor. Subimos de status num estalar de dedos.Nem todo mundo tinha sorte como eles. Os outros precisavam se esforçar mais. esforçar mais.

segunda-feira, outubro 29, 2018

A ponte

“Declaro oficialmente inaugurada a ponte Hong Kong-Zhuhai-Macau”, disse o presidente chinês na cerimônia.
Shui nem acredita que ficou pronta a maior ponte marítima do mundo.
Após toda a confusão em torno de quem poderia percorrê-la, o governo começou a emitir centenas de autorizações e Shui conseguiu a sua. Pegou seu carro e partiu de Macau rumo a Hong Kong, um lobo solitário como sempre.
O mar cintila à luz do sol. O vento acaricia seu rosto, refrescante. Ele acha que em breve vai alcançar metade da ponte. Aproveita a alta velocidade, se sentindo num autorama. Como é bom co...

De repente, há um clarão ao longe, parecendo uma explosão. Shui desacelera, assustado. O chão dá a impressão de estremecer um pouco.
Ele segue em frente, curioso e temeroso ao mesmo tempo. Pelo retrovisor, vê que os carros atrás também avançam, mas nenhum passa na pista contrária.
Após um tempo, consegue avistar a confusão: um acidente de grandes proporções, colisão entre vários automóveis. Outros carros se aglomeram a certa distância. Shui para o veículo.

– O que aconteceu? – pergunta a uma mulher.
– Pelo que me falaram, dois motoristas começaram a brigar correndo lado a lado. Um estava vindo de Macau, que dirige como você, no lado esquerdo, e outro vinha de Zhuhai, dirigindo na direita. Ou seja, ficaram janela com janela, enlouquecidos. Acabaram perdendo a direção, bateram, depois colidiram com mais carros, até quebraram a mureta e causaram um engavetamento na outra pista.

Shui está abismado com a catástrofe. Será que dá para fazer o retorno no trecho de mureta que acabou desabando?
Pelos alto-falantes da ponte, soa uma voz: "Atenção! A ponte está sendo interditada devido ao acidente. Fiquem em seus lugares, não é possível retornar agora."

Shui não consegue acreditar em seus ouvidos. Eles vão ficar presos no meio do mar? Por que não chegou nenhum helicóptero, nenhum carro dos bombeiros, ambulância ou algo do tipo?
A espera se estende, os alto-falantes não voltam a soar, os celulares não pegam. As pessoas partilham bebida, comida.

O crepúsculo já quer dar o ar da graça. A informante de antes, Ying, se põe a bocejar, sonolenta. De repente, disparam alarmes. Todos se sobressaltam. Os alto-falantes voltam à vida: "Alerta! Um motorista bocejou três vezes em vinte segundos. Direção perigosa. Cuidado com o trânsito."
Silêncio.
Só pode ser uma piada. Ou um sistema automático da ponte.

O fogo parece já ter se extinguido. Yuan, um senhor gordinho, se aproxima cautelosamente dos carros envolvidos no acidente.
– Não tem ninguém ao volante!
– Como assim? – indaga Yuga, a adolescente.
– Olhe para os modelos: são todos carros automáticos, projetados para andar sem piloto.
– Pelo menos ninguém morreu... Mas como esses carros foram parar aqui ao mesmo tempo? E de onde veio aquela história de disputa?

Em meio à escuridão, não resta alternativa a não ser deitar nos bancos dos automóveis, ou ficar sentado mesmo, e dormir. Depois de se revirar um pouco, a cabeça a mil, Shui consegue adormecer.
Sonha que a ponte se transformou numa cidade, os motoristas passaram a morar lá, construíram uma sociedade. O governo chinês abandonara todos ali porque Hong Kong e Macau resolveram declarar independência e ninguém queria se responsabilizar. Os qiaoistas já iam se tornar uma potência...

Ele acorda dessa maluquice. Várias pessoas se rebelam e começam a fazer o retorno por cima da mureta quebrada, acreditam que é possível voltar.
Os restantes tomam café da manhã juntos, já sabem o nome uns dos outros. É preciso se unir para resistir. As horas se arrastam. Shui pensa se deveria tentar voltar. Está revoltado com a situação, o descaso.

É então que surge um helicóptero. Todos gritam entusiasmados. Enfim o resgate! Só que ele fica pairando no alto, sem fazer menção de pousar. O som do que parece um megafone reverbera:
– Parabéns aos que continuaram firmes! Vocês acabam de ingressar no reality show Zài Jíxiàn!

Todos berram eufóricos. Shui, Ying, Yuan, Yuga e os outros se inscreveram no programa misterioso que promete dar prêmios astronômicos.

– As regras basicamente são sobreviver na ponte. De ambos os lados dos carros acidentados há um grupo concorrente. Mas só haverá uma pessoa ganhadora no fim.

Shui está maravilhado. As câmeras da ponte vão registrar todos os seus dias de luta e determinação. Agora admira ainda mais aquele projeto que levou 9 anos para ser concluído, superfaturado, corrupto e mortal. Construir uma ponte para ser palco de um reality!

Ele vai aparecer na TV e não poderia estar mais feliz.

domingo, outubro 14, 2018

BUG

Marcela está atrasada para o trabalho. Ela chega correndo ao prédio, passa pela catraca e agora espera impaciente por um dos elevadores. Bem que podia trabalhar num andar mais baixo, e não quase 20 andares acima.
A fila dá voltas no saguão. O primeiro grupo entra, o segundo vai, deve conseguir ir no terceiro.
Chegou a hora! A cabine já está lotada, mas Marcela não quer saber e se espreme para dentro. O apito do elevador indica que o limite de peso foi excedido e ela é obrigada a sair.

Então chega mais um elevador, vazio. Não tem mais ninguém no saguão. Um elevador só para ela. Antes que ele suma como uma miragem, se joga para o interior.
Marcela logo olha para o visor que indica os andares, pois aquele ali é uma diversão à parte: sempre exibe uma data louca ou uma temperatura insana. Outro dia estava escrito 19/03/2038 e -5ºC.
Hoje nem está tão estranho assim: 30/12/1999 e 40ºC.

Quando chega ao seu andar, ela estaca. O que aconteceu com a empresa? Alguma obra? Não estava assim ontem.
– Boa tarde, senhorita. Em que posso ajudá-la?
É então que repara que não está de manhã. Um sol quente atravessa a vidraça e faz muito calor.
– Ahn, eu trabalho aqui.
– Desculpe, às vezes são muitos rostos.

Atordoada, Marcela anda pelo corredor até onde seria sua sala. Os computadores são muito antigos, as roupas e penteados não parecem atuais. As pessoas a olham com estranheza, não a reconhecendo. Se aquilo é mesmo 1999, ela ainda seria uma criança, nem pensando em trabalhar.

– Caríssimos! – brada uma voz. – Estamos quase terminando o ano, então é uma oportunidade propícia para brindarmos ao próximo que virá. Venham pegar suas taças de champanhe.

Como assim? Eles estão em maio, não em dezembro! Para não ser questionada, Marcela brinda junto com todos.

– Último dia de expediente, estão todos liberados! Só quero ver vocês agora no ano 2000!
Há uma comemoração geral após o anúncio do suposto diretor. Enquanto as pessoas se arrumam para ir embora, desligam seus computadores, ela continua vagando pela empresa, curiosa para ver como tudo é.
Numa mesa, vê a manchete de uma revista: O BUG DO MILÊNIO PODE MESMO CAUSAR ALGUM PROBLEMA SÉRIO? Veja o que especialistas afirmam.
Sim, elevadores malucos.

A empresa já está praticamente vazia. Marcela anda de volta ao saguão do andar e se depara com um cara franzino à espera. Precisa pegar novamente o elevador que a levou até ali. Por acaso, é o que chega primeiro.

Entram juntos. Ela não tem coragem de encarar o visor. Vai que está escrito 2038? Olha de esguelha para o homem ao seu lado. Até que ele é bonito, parece simpático, a deixou entrar primeiro, deu um sorrisinho. Segura um livro, dá a impressão de ser reservado.
Sem conseguir se conter, ela fita o visor: 18/05/2018. Foi quando entrou no elevador. Não pode ser coincidência.

Chegam ao térreo e a porta se abre. Parece o saguão de 2018, mas não tem como saber como era em 1999. Marcela vê as catracas e, principalmente, os porteiros, os mesmos!

– Nós estamos no térreo?
Olha para trás e vê o rapaz, assustado. E se...

– Sim. Você aceita tomar um sorvete comigo? Posso te explicar.
Ele concorda, hesitante.
Obrigada, bug.

sábado, outubro 06, 2018

Eu não sou um robô

Outro dia, estava preenchendo um cadastro num site e apareceu a famosa verificação: clicar na caixinha de "Eu não sou um robô". Cliquei, mas não apareceu o tique de sempre. Em vez disso, surgiu a pergunta: "Como você pode ter tanta certeza?"

Confuso, escrevi no campo abaixo: "Eu já fui um bebê." Então veio a réplica: "Como você sabe disso?"
Não conseguia acreditar no que estava acontecendo. Eu só queria completar um cadastro!
"Vi fotos, minha mãe e várias pessoas me contaram."
"Quem garante que não se trata de uma manipulação?"
"Com qual finalidade?"
"Eu não respondo, só faço perguntas. E se as pessoas que te falaram isso também são robôs?"

Eu já estava com vontade de esmurrar o teclado.
"Robôs não envelhecem!"
"E se a tecnologia já é avançada a esse ponto e todos são robôs nas mãos de algum grupo?"
"Ah, que ótimo, bela teoria da conspiração. Acho que você viu Matrix demais."
"E se Matrix foi um filme feito para você achar que isso é apenas ficção?"
"Acho que, se a ideia era ocultar essa teoria, seria melhor não ter feito um filme blockbuster que deu destaque a ela."
"É, você me pegou... Está cadastrado."

Dei um grito de alívio. Enfim poderia fazer meu curso on-line de filosofia.

domingo, setembro 30, 2018

Desaniversário

Dora já está acostumada a ser a mais nova da turma. Não é que apenas pareça mais nova. Ela realmente é mais nova, muito mais. Passaram-se 16 anos do seu nascimento, mas, na prática, a menina só tem 4 anos.

Ok, vou explicar: Dora nasceu em 29/02, ou seja, num ano bissexto. Então, durante 4 anos, ela simplesmente não cresceu fisicamente, apesar de seu intelecto ter se desenvolvido.
Agora, seus pais tentam mais uma escola, para ver se ela se adapta. Dora imagina que todo mundo vai olhá-la torto, achando que aquilo é alguma pegadinha. E a situação iria piorar mais ainda quando ela começasse a responder certo ao professor. Os outros se sentiriam humilhados.

Mas eu não sei de nada disso quando Dora entra na sala de aula, nervosa. O diretor a acompanha para explicar à turma por que a menina está ali. Quando os cochichos começam, ele pede silêncio e pergunta se alguém poderia dar suporte à nova aluna.

Levanto a mão e Dora se senta ao meu lado.
– Obrigado, Lorena – agradece o diretor, mas na verdade faço isso só por curiosidade.
– Essa história toda é verdade? – disparo para Dora. – Acho difícil acreditar.
– Ah, é? E quando você nasceu?
– 1º de abril.
– Rá, rá! Grande piada.

A reação típica: risadas ou sorrisos amarelos. Ninguém vai às minhas festas de aniversário porque acham que é brincadeira. Até aquela menininha superdotada desdenha.

– E quando ninguém te dá parabéns?
Me viro para ver quem falou. É uma garota desconhecida.
– As pessoas me dão parabéns, mas quase sempre no dia 28/2 ou 01/03 – responde Dora.
– Estou falando de mim – disse a garota, ríspida. – Eu nasci à meia-noite, entre dia 31/12 e 01/01, então fico meio em dúvida em que dia nasci. Mas não faz diferença, porque todo mundo só está berrando, soltando fogos e bebendo. Prazer, sou Medina, a rabugenta.
– Formamos um belo trio – comento.

– E aí, Lorota, já arrumou emprego de babá?
Só podia ser o mala do Aparecido. Ficou chato assim porque faz aniversário 12/10 e, desde pequeno, só ganha um presente, incluindo Dia das Crianças. Acha que tem direito a encher o saco de todo mundo.

Dora deve ser a aluna mais excêntrica da turma agora. Até então, os mais peculiares eram os nascidos no Carnaval, na Semana Santa e em Corpus Christi. Todo ano comemoravam numa data diferente para acompanhar a celebração móvel. Quase ninguém dava parabéns, porque não há Facebook que dê conta de lembrar.

O problema é que há cada vez mais discriminação só por causa do dia em que a pessoa nasceu. Esse não era o mundo que o Chapeleiro esperava quando criou esta escola.



sábado, setembro 22, 2018

A sociedade secreta

Um dia ainda vou descobrir que existe uma sociedade secreta dos guarda-chuvas. Só isso poderia explicar como os vendedores de sombrinha e "familião" aparecem no exato instante em que cai a primeira gota do céu. De onde eles surgem? Onde fica toda a carga em tempos não pluviais?

Minha teoria é que eles vivem nos bueiros junto com as Tartarugas Ninjas, mas não têm um rato como mestre. Certamente são muito devotos de São Pedro e pedem sempre discernimento para saber quando devem ir para a luz ou mesmo para solicitar chuva. Mas também contam com um sistema avançado que deixaria o Instituto de Meteorologia babando.

Além disso, é uma organização tão poderosa que está intrinsecamente ligada aos guarda-chuvas desaparecidos em ônibus, metrôs, trens, escolas, bancos, nos mais diversos lugares. Sempre nos perguntamos como guarda-chuvas podem evaporar, sumir tão fácil. E se a Umbrella Corporation estivesse por trás de tudo?

Quem sabe seus tentáculos se estendam até as canetas, que brotam perto dos locais de prova após desaparecer misteriosamente em outros lugares. Fico fascinado com a capacidade desses profissionais caçarem concursos e estarem antenados, junto aos flanelinhas, que têm a agenda anual do município na cabeça.

É desse nível de organização e estratégia que o Brasil precisa. O próximo passo provavelmente será implantar cursos de direção de guarda-chuva, para as pessoas que esquecem que existem outras ao redor, quase furam seu olho ou arrancam sua peça quando passam bem educadamente.
Meu medo é se aliarem ao Detran e se transformar numa máfia que vai exigir renovação de guarda-chuva a cada 5 anos e vistoria anual.

Pensando bem, melhor deixar como está.

domingo, setembro 02, 2018

Os gauleses

Um mistério que sempre me deixa intrigado são as pessoas paradas na beirada da plataforma do  CANTO em Botafogo. Elas estão sempre esperando o metrô da Linha 2, com o letreiro verde, que vai para Pavuna e chega vazio ali.

Eu entendo perfeitamente quando todo mundo se aglomera na beirada na plataforma do MEIO, pois a porta desse lado abre primeiro. Aí começa a dança das cadeiras da vida real e a gente compreende por que brincou disso na infância: era tudo preparatório para sentar no metrô. É o estouro da boiada e não adianta reclamar com a tia que o amiguinho deu um chega pra lá em você para tirar seu assento.

O que não entendo é as pessoas ficarem na beirada da outra plataforma. A porta do lado direito abre depois, quando todo mundo no lado esquerdo já disparou e ocupou tudo. Mas os passageiros continuam estacados na plataforma errada, mais irredutíveis que a aldeia de gauleses de Asterix.

O que sempre acontece é que chega o metrô da Linha 1 e você, cheio de paciência, espera as pessoas à sua frente entrarem primeiro. Só que você descobre que aquelas pessoas são gaulesas, apenas atravancando o caminho, no meio da passagem, e ainda se ofendem se os outros reclamam ou esbarram sem querer.
Imagino que um dia, quando eu tentar contornar um dos gauleses, serei segurado pelo braço.

– Senhor, vou pegar a Linha 1 – aviso.
– Espere conosco, meu irmão.
– Desculpe, mas vou descer na São Francisco Xavier.

Tento me desvencilhar, mas o homem é mais forte. O apito da porta soa.
– Você já ouviu falar na Iniciativa Expectantes?
A porta se fecha e eu suspiro frustrado.
– Junte-se a nós, os Expectantes da Primazia da Porta Direita. Cremos que um dia a Porta Direita terá a Primazia. Nossa Expectativa não morrerá jamais.
– Perdão, eu sou católico. E sei que só a porta da esquerda...
– Não seja incrédulo! Espere e verá!

O metrô da Linha 2 surge do túnel, o letreiro verde cintilando. Ele desacelera e para. Posso sentir o peso da Expectativa – mas não meu braço, que está dormente.
Os passageiros da outra plataforma já se preparam; eu não me surpreenderia se pusessem as mãos no chão como se fossem velocistas.

E a Porta Direita se abre primeiro.

Sou ofuscado por uma luz verde berrante, ouço gritos. Quando consigo enxergar de novo, os gauleses sumiram.

Atordoado, vejo no chão um panfleto dos Expectantes. Após a Abertura da Porta, eles acreditam que o metrô da Linha 2 irá até Jardim Oceânico.

Melhor esperar sentado. Não no metrô pra Pavuna.

domingo, agosto 12, 2018

O início da criminalidade

Há alguns anos, decidimos viajar para Miguel Pereira. Eu ia com meus pais, minha irmã e meus tios. Pegamos o ônibus na rodoviária por volta das 18h.
A viagem seria tranquila se não chovesse. Mas, ainda na Presidente Dutra, começou a chover muito, muito mesmo. Se de dia já é complicado, imagine de noite na estrada.

No meio da serra de Miguel Pereira, descobrimos que tinha acontecido um deslizamento. Aparentemente a tempestade fez desabar uma parte de uma fábrica de gelo, aí já viu, juntou a chuva torrencial com uma enxurrada da indústria.
O ônibus ficou parado um tempão na estrada, noite adentro. Então, o motorista resolveu fazer um retorno e ir por Paracambi, pois seria impossível percorrer o caminho normal.

Quando chegamos a Miguel Pereira, já era madrugada, uma escuridão, e estávamos perdidos. O lugar estava deserto, não parecia haver ninguém a quem perguntar a direção do hotel. Vimos, então, um velhote. Cheio de esperança, fomos falar, mas ele estava mais pra lá do que pra cá.

Eis que vejo a certa distância um casal andando. Parti atrás deles de capuz levantado, cabeça baixa, na rua vazia, parecendo um trombadinha. Felizmente os dois não me viram antes, senão teriam saído correndo. Eles deram as orientações para chegar ao hotel e ficamos mais aliviados.

Percebemos que seria necessário contornar um lago de porte razoável, mas havia um pontezinha cruzando que poderia servir de atalho. Ahn... melhor não arriscar, ainda mais com malas. Pense só na gente caindo da ponte dentro do lago no meio do breu.

Fizemos todo o caminho contornando o lago até o hotel. Apertamos o botão do interfone. Nada. Afundando o botão no interfone. Nada. Batemos palmas, chamamos. Nada. Acho que não tínhamos o número do telefone, ou o celular não poderia ligar. Começou a bater o desespero. A gente ia ficar preso do lado de fora do hotel no frio, sem dormir, exaustos?

Só havia uma opção: eu precisaria pular o muro e procurar alguém lá dentro. Se o casal já achasse que eu era delinquente, agora teria toda a certeza.
Subi na mureta e pulei por cima da grade. Andei até o prédio e, do nada, surgiu um homem lá de dentro. Ele levou um susto e ainda me deu bronca por ter feito aquilo. Engraçado que ele estava dormindo e não ouviu nada...
Conseguimos enfim fazer o check-in, esgotados.

No dia seguinte, à luz do dia, demos graças a Deus por não termos pegado a ponte: era uma coisa frágil de madeira e sem dúvida teríamos parado no fundo do lago.
No fim das contas, foi uma viagem prazerosa só com esses pequenos incidentes. Foi assim que comecei minha carreira no crime.

sexta-feira, agosto 03, 2018

Doce tempo

A viagem estava demorando muito. Resolvi comer brevidades.

domingo, julho 29, 2018

Estripulias

Que atire a primeira pedra quem nunca fez estripulia – o dicionário está mandando eu escrever "estrepolia", mas nem a pau! Começo aqui minha traquinagem.
Qualquer um tem uma historinha de criança, por mais quietinha que a pessoa seja (e eu não fui uma criança assim, boquiabertem-se).

Num dos casos, saí correndo como um louco pelo terraço do apartamento onde morava. Como nunca fui um velocista do tipo do Bolt (nem mesmo do tipo do Rubinho), não sei como consegui derrapar e fui com tudo para cima do viveiro dos passarinhos. A gaiola grande desabou, derrubando água e comida, quase matando os bichos do coração. Prevendo uma bronca daquelas, aproveitei a ausência dos meus pais e corri para arrumar, varrer e enxugar tudo. Ufa, tinha apagado todas as pistas.
Horas depois, quando meu pai foi dar uma olhada nos passarinhos, ficou espantado porque eles estavam sem água e praticamente sem comida. Ou seja, o inteligente quase matou as aves de fome e sede. Parabéns, Gabriel, serviço completo. Não tive jeito a não ser confessar – merecia uma penitência de 10 Ave-Marias sem poder dar um pio.

Nessa área de travessuras, sempre existe o risco de um pirralho meter o dedo na tomada. E quando o fedelho quer fingir que a tesoura é um plugue? Pois é, eu fiz isso quando era pequeno. Enfiei a tesoura com vontade na tomada, mas o anjo da guarda tinha feito um pacto de não agressão com Murphy (não o Eddie) e sussurrou no meu ouvido: "Pega a tesoura de cabo de plástico, não a toda de metal, pelo amor de Deus." Na mesma hora saíram faíscas da tomada, eu levei um susto e taquei a tesoura de volta na gaveta da máquina de costura.
Mais tarde, eu não estava presente, mas soube que ocorreu o primeiro caso de delação ingênua registrado na História. Minha mãe pegou a querida tesoura e falou algo do tipo: "Que estranho, parece que a ponta tá derretida." Minha irmã prontamente disse: "Gabriel enfiou na tomada e saiu foguinho!" A tesoura teve que ser amolada e a história entrou para a posteridade. A expressão, inclusive, já consta no Dicionário Cumaddig (435ª edição) como sinônimo de mongolice.

Situações assim existem várias, como quando espalhei óleo pela casa toda ou quando quebrei uma porta de vidro em cima de outra pessoa (mas evito comentar para não ser fuzilado com os olhos rs).
Novamente, o mais interessante neste papo todo é saber: Quais estripulias vocês já fizeram? Ou mesmo estrepolias, se você for mais puritano; eu não julgo.

quarta-feira, julho 25, 2018

Sinais

Na estrada, uma placa:
ATENÇÃO
CURVA ACENTUADA
Esse Novo Acordo já está extrapolando.

domingo, julho 22, 2018

Desejo a todos uma boa viagem

O metrô se aproxima da plataforma de São Cristóvão sob o sol forte. Como sempre, todos os vagões estão bem cheios. Consigo me espremer para dentro e achar um lugar para me segurar. O trem faz seu percurso ao ar livre até a Cidade Nova e eu me perco em pensamentos, é um caminho nada novo.

Quando volto à realidade, vejo um grupo junto à porta do outro lado, devem ter acabado de entrar. Estão todos de vermelho, provavelmente trabalham juntos nas Americanas ou numa empresa qualquer. O trem segue seu caminho e já estou pronto para voltar ao devaneio quando o metrô para entre duas estações.

Solto um suspiro, que se multiplica pelos outros passageiros. Ouço algumas reclamações. Acontece sempre antes da Central, mas é de praxe resmungar, né? Essas tais linhas do metrô que na verdade são uma coisa só...
Desta vez o condutor do trem não fala o discurso de costume. Até ele deve estar cansado de justificar o engarrafamento subterrâneo.

Um celular começa a tocar uma música famosa: "Bella Ciao". Dá vontade de cantar o refrão da série de TV, mas nesta hora, não sei como, um espaço parece se abrir no vagão, e o grupo vermelho emerge com máscaras do Romero Britto e entoa num coro de duas vozes:

Esta manhã eu já pensei
Crivella, tchau, Crivella, tchau, Crivella, tchau, tchau, tchau
Esta manhã eu já pensei
Chegou a hora do pastor

Os passageiros não sabem se riem ou se ficam espantados. Consigo ver que um dos Romeros abre a mochila e saca uma impressora HP, e outro surge com um laptop. Com os dois ligados, o primeiro lunático começa a imprimir algo. O que raios aquelas pessoas estão fazendo? Tem início um burburinho entre os passageiros.

– Silêncio! – grita o Romero da HP e todos obedecem, chocados. – Vamos ficar parados aqui...
– Ah, grande novidade – interrompe uma mulher. – Todo dia a gente fica parado várias vezes.
– Se você não calar a boca, vamos te trancar na estação Carioca 2. Ou quem sabe dar uma nadada na Gávea alagada?

A expressão da mulher é de desespero. Ela se cala.

– Continuando... – retoma o Romero. – Fizemos o condutor de refém e vamos ficar aqui imprimindo dinheiro. Nosso objetivo é torná-lo popular, como fez nosso mestre com a arte. Somos Paciência, Piedade, Pechincha, Glória, Cosmos, Abolição, Bonsucesso e Encantado, comandados pelo genial Todos os Santos. Espero que ninguém se sinta ofendido pelos nomes.

Se alguém iria se manifestar, não dá para saber, pois neste momento o metrô se põe a andar, mas quase no mesmo instante dá uma freada brusca e os passageiros só não caem todos no chão porque não há tanto espaço de queda.

– Acho que estamos tendo algum problema com o condutor – fala o Romero do Lap, se levantando. – Vou lá verificar.

Ele sai do nosso vagão. A impressora continua a todo vapor, sendo abastecida com o que parece papel-moeda. O que vai saindo é cortado por um dos Romeros com uma guilhotina que veio sabe-se lá de onde. Não acredito que aquilo está acontecendo. Será que eles viram muito O homem que copiava?

De repente, pelo alto-falante do vagão, sai uma voz: "Em nome do Metrô Rio, peço desculpas pela frenagem automática do sistema."
– Agora, sim. Não suporto gente que não dá satisfação – comenta um dos Romeros.

O trem, então, volta a andar repentinamente. Todos se entreolham, confusos. Os Romeros parecem não se importar.
O Romero do Lap volta para nosso vagão, estão todos em suspense.
– Pessoal, já consegui comprar um fone de 3 metros de fio e aquela balinha mastigável que eu adoro. Falei para o condutor tocar o bonde. Também não quero que ninguém leve esporro do chefe.

Quando o trem já vai parar na Central, os malucos pegam todo o dinheiro, desligam os aparelhos. No segundo antes de se abrirem as portas, eles gritam "Onde está a Linha 3?"
Os oito pulam para fora e o dinheiro voa para todo lado. Os passageiros não se contêm e pegam as notas, alguns até se estapeiam.

Olho para a minha cédula e vejo que é apenas um panfleto convocando para uma manifestação a favor do impeachment do prefeito. É cada coisa ridícula que se faz para divulgação...
Entro no evento do Facebook e clico em "Comparecerei".

sábado, julho 14, 2018

Dia de casório

Há uns dez anos, fui convidado para o casamento de uma colega. Não éramos próximos, mas trabalhávamos juntos, então fui chamado.

Eu e Carla nos encontramos e fomos de táxi para Botafogo. O motorista nos deixou na rua e nos aproximamos de um portão que guardava o jardim de uma bela capela. Perguntamos a um homem que estava ali: “É aqui que vai ter um casamento?” Ele confirmou e subimos a ladeira até a capela.

Sentamos num banco do meio e esperamos. Esperamos muito, e nada da noiva chegar. Um cara no banco da frente estava conversando com as pessoas do nosso lado, ofereceu bala para elas, ofereceu pra gente mesmo sem nos conhecer. Nós aceitamos para passar o tempo.

Enfim, continuei esperando. Mas finalmente começou a tocar a primeira música. Entrou o noivo com a mãe, depois o pai dele com a mãe da noiva, a procissão de padrinhos. Era chegada a grande hora. Ouviram-se os primeiros acordes da Marcha Nupcial, as portas da igreja se abriram e a noiva entrou com o pai.

Na mesma hora, falei pra Carla: “Amor, essa não é a minha colega!”
A gente tinha entrado no casamento errado!

Esperamos os dois chegarem ao altar e, de forma discreta, saímos da capela – se é que dá pra sair discretamente do banco do meio logo depois que a noiva chegou. Começamos a rir muito e fomos tentar descobrir onde era o casamento mesmo. Descobrimos que era um pouco mais à frente, que o local não era uma igreja e que a cerimônia já tinha acabado...

Envergonhado, contei o ocorrido a um conhecido lá e ele simplesmente disse: “Acontece.”
Acho meio difícil isso ser comum, mas sempre conto pras pessoas darem boas risadas.

domingo, julho 08, 2018

O lago da casa

– Olha que legal, mãe, um lago!
– Lucas, não se apoia na janela, é perigoso!
Mamãe me arranca do parapeito e me dá um puxão de orelha.
– Ai! – berro e esfrego a orelha.
– O que é isso? – pergunta papai ao corretor.
– É um terreno abandonado. Uma construtora ia fazer um hotel, mas a obra foi embargada e, com as chuvas, vai acumulando água. Mas não se preocupe: a Prefeitura sempre faz vistoria e tem até peixes aí para comer possíveis larvas.

"A obra foi embargada"? Já ouvi mamãe falar que titia estava com a voz embargada por causa do choro. Será que todo mundo começou a chorar e não deu pra continuar a obra?
Mas o que me interessa mesmo daquele monte de palavras são os peixes. Então é um lago mesmo! Imagina, a janela do quarto de casa dando pra um lago!

– Pai, mãe, vamos comprar, eu quero um lago!
– Filho, temos que pensar ainda qual é o melhor apartamento, tá? – responde papai. – Obrigado, já está bom, nós vamos agora – completa ele ao corretor, e vamos embora.

No caminho para casa – que em breve não será mais nossa casa –, fico calado visualizando o lago: uma água verdinha cheia de plantas, umas colunas pequenas de pedra com passarinhos pousados... Nunca vi nada parecido no meio da cidade. Nas ruas mesmo mal tem árvores.
Não sei se por minha insistência ou por causa de outra coisa, meus pais resolvem comprar a casa do lago.

Sabendo que eu vou querer admirá-lo todo dia, eles deixam a porta do quarto deles trancada pra eu não cair na tentação de dar uma espiada sem ninguém perto.
Passarinhos dando rasante pra beber água, peixes ondulando, libélulas sobrevoando... aparece até uma garça alguns dias!

Um dia acordo de um dos meus sonhos com vontade de ir ao banheiro. No caminho, escuto meus pais cochichando.

– Rui, você soube que os vizinhos estão reclamando do terreno? Mesmo tendo controle da Prefeitura, parece que conseguiram na Justiça que aterrem tudo. Sabe como é, pessoal paranoico com dengue, essas coisas... Vão acabar com o lago.
– Caramba... Coitado do Lucas. Ele vai ficar inconsolável.

Eu não sei o que é inconsolável, mas sei que estou triste, muito triste. Começo a chorar e até esqueço do xixi.
– Lucas, você tá acordado? – pergunta mamãe, aparecendo na porta da sala.
Acho que é com a voz embargada que solto minha dúvida:
– Mãe, árvore dá dengue?
– Não, filho, é quando tem água parada... – começa ela, mas eu a interrompo:
– Então por que não tem árvore nenhuma na rua? Por que a gente não vê natureza por aqui? Por que querem matar o lago?

Mamãe fica em silêncio. Papai continua calado, então fala:
– Você quer que eu te leve lá?
Na mesma hora minhas lágrimas secam. Eu ergo os olhos.
– A gente pode ir?
– Eu dou um jeito.

Alguns dias depois, papai "mexe os pauzinhos" (não sei o que pauzinhos têm a ver com a história) e conseguimos entrar no terreno com uns funcionários da Prefeitura.

Paro na beira do lago, observando maravilhado. Levo um susto com um passarinho que dá um rasante em mim, então começo a rir. Pego a câmera do papai e vou tirando foto atrás de foto pra registrar o grande evento. A garça dá o ar da graça e surge, andando no seu passo lento, com certeza querendo pegar um dos peixes. Fecho os olhos e inspiro fundo para sentir todos os cheiros.

Então abro os olhos e vou mais até a beirinha, me abaixo e arranco um talinho de planta. Guardo de recordação na minha carteirinha.
Quando me levanto, um bem-te-vi começa a cantar. Eu sei que está na hora de partir.

domingo, julho 01, 2018

Inveja branca

"Quando oiei meu amigo lendo
Em Paris numa mansão
Eu invejei, meu Deus do céu, ai
Mas que tamanha ostentação

Falam que é inveja branca
Todo mundo usa a expressão
Isso num disse
É só modinha
Conheço bem
Meu coração"

sábado, junho 30, 2018

E segue o baile

Sexta à noite na volta do trabalho, estou subindo as escadas do metrô da Afonso Pena quando me deparo com uma cena inusitada: uma garota está dançando balé na saída da estação para divulgar uma escola de dança próxima. Levanta a perna lá no alto, rodopia várias vezes.

Não sei o que dá em mim, mas me sinto como se estivesse em casa dançando de palhaçada e, mal subo o último degrau, dou um salto e faço uma pirueta. Na mesma hora a garota estaca, quase se desequilibra, e os outros integrantes da escola me encaram entre chocados e risonhos com os panfletos nas mãos.

Vendo que estou vestido a caráter para a festa junina que aconteceu no trabalho, uma menina grita:
– Tá debochando, caipira? Agora vai ter que dançar forró!

Ela me puxa para uma dança e, antes que eu possa impedir, estamos sacolejando de um lado para outro ao som de uma gaita que surgiu sabe-se lá de onde. As pessoas que passam aplaudem. Quando me vejo livre, faço uma reverência e vou embora.

Você deve estar pensando: “Não é possível que o Gabriel fez isso.”

Pois é, não é mesmo. Isso tudo só foi minha imaginação insana quando vi a menina dançando balé.