segunda-feira, outubro 29, 2018

A ponte

“Declaro oficialmente inaugurada a ponte Hong Kong-Zhuhai-Macau”, disse o presidente chinês na cerimônia.
Shui nem acredita que ficou pronta a maior ponte marítima do mundo.
Após toda a confusão em torno de quem poderia percorrê-la, o governo começou a emitir centenas de autorizações e Shui conseguiu a sua. Pegou seu carro e partiu de Macau rumo a Hong Kong, um lobo solitário como sempre.
O mar cintila à luz do sol. O vento acaricia seu rosto, refrescante. Ele acha que em breve vai alcançar metade da ponte. Aproveita a alta velocidade, se sentindo num autorama. Como é bom co...

De repente, há um clarão ao longe, parecendo uma explosão. Shui desacelera, assustado. O chão dá a impressão de estremecer um pouco.
Ele segue em frente, curioso e temeroso ao mesmo tempo. Pelo retrovisor, vê que os carros atrás também avançam, mas nenhum passa na pista contrária.
Após um tempo, consegue avistar a confusão: um acidente de grandes proporções, colisão entre vários automóveis. Outros carros se aglomeram a certa distância. Shui para o veículo.

– O que aconteceu? – pergunta a uma mulher.
– Pelo que me falaram, dois motoristas começaram a brigar correndo lado a lado. Um estava vindo de Macau, que dirige como você, no lado esquerdo, e outro vinha de Zhuhai, dirigindo na direita. Ou seja, ficaram janela com janela, enlouquecidos. Acabaram perdendo a direção, bateram, depois colidiram com mais carros, até quebraram a mureta e causaram um engavetamento na outra pista.

Shui está abismado com a catástrofe. Será que dá para fazer o retorno no trecho de mureta que acabou desabando?
Pelos alto-falantes da ponte, soa uma voz: "Atenção! A ponte está sendo interditada devido ao acidente. Fiquem em seus lugares, não é possível retornar agora."

Shui não consegue acreditar em seus ouvidos. Eles vão ficar presos no meio do mar? Por que não chegou nenhum helicóptero, nenhum carro dos bombeiros, ambulância ou algo do tipo?
A espera se estende, os alto-falantes não voltam a soar, os celulares não pegam. As pessoas partilham bebida, comida.

O crepúsculo já quer dar o ar da graça. A informante de antes, Ying, se põe a bocejar, sonolenta. De repente, disparam alarmes. Todos se sobressaltam. Os alto-falantes voltam à vida: "Alerta! Um motorista bocejou três vezes em vinte segundos. Direção perigosa. Cuidado com o trânsito."
Silêncio.
Só pode ser uma piada. Ou um sistema automático da ponte.

O fogo parece já ter se extinguido. Yuan, um senhor gordinho, se aproxima cautelosamente dos carros envolvidos no acidente.
– Não tem ninguém ao volante!
– Como assim? – indaga Yuga, a adolescente.
– Olhe para os modelos: são todos carros automáticos, projetados para andar sem piloto.
– Pelo menos ninguém morreu... Mas como esses carros foram parar aqui ao mesmo tempo? E de onde veio aquela história de disputa?

Em meio à escuridão, não resta alternativa a não ser deitar nos bancos dos automóveis, ou ficar sentado mesmo, e dormir. Depois de se revirar um pouco, a cabeça a mil, Shui consegue adormecer.
Sonha que a ponte se transformou numa cidade, os motoristas passaram a morar lá, construíram uma sociedade. O governo chinês abandonara todos ali porque Hong Kong e Macau resolveram declarar independência e ninguém queria se responsabilizar. Os qiaoistas já iam se tornar uma potência...

Ele acorda dessa maluquice. Várias pessoas se rebelam e começam a fazer o retorno por cima da mureta quebrada, acreditam que é possível voltar.
Os restantes tomam café da manhã juntos, já sabem o nome uns dos outros. É preciso se unir para resistir. As horas se arrastam. Shui pensa se deveria tentar voltar. Está revoltado com a situação, o descaso.

É então que surge um helicóptero. Todos gritam entusiasmados. Enfim o resgate! Só que ele fica pairando no alto, sem fazer menção de pousar. O som do que parece um megafone reverbera:
– Parabéns aos que continuaram firmes! Vocês acabam de ingressar no reality show Zài Jíxiàn!

Todos berram eufóricos. Shui, Ying, Yuan, Yuga e os outros se inscreveram no programa misterioso que promete dar prêmios astronômicos.

– As regras basicamente são sobreviver na ponte. De ambos os lados dos carros acidentados há um grupo concorrente. Mas só haverá uma pessoa ganhadora no fim.

Shui está maravilhado. As câmeras da ponte vão registrar todos os seus dias de luta e determinação. Agora admira ainda mais aquele projeto que levou 9 anos para ser concluído, superfaturado, corrupto e mortal. Construir uma ponte para ser palco de um reality!

Ele vai aparecer na TV e não poderia estar mais feliz.

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