sexta-feira, junho 12, 2020

Feriadão

Uma semana inteirinha em casa. Para Thadeu, isso não ia fazer diferença, porque ele já estava trabalhando em home office e mal botava o pé para fora, mas muitas pessoas ainda precisavam sair para o serviço.

Agora poderiam ficar em casa. Bom, pelo menos era o que ele esperava. Não duvidava nada que gente sem noção iria querer aproveitar os feriados antecipados para passear, viajar… Que fossem impedidos e levassem uma bela multa.


Espreguiçou-se e pensou que pelo menos dava para curtir sem trabalhar, vendo séries, jogando… Ligou a TV e se deparou com uma espécie de passeata. Passeata em meio à pandemia? Todos de verde e amarelo… Demorou a entender a repórter. Ela falava que as pessoas estavam celebrando o Sete de Setembro.

Elas tinham enlouquecido. Uma coisa era adiantar o dia sem trabalho, outra era fingir que realmente era o dia. Não podiam esperar a disseminação do vírus cair e comemorar no dia correto? Patriotas…

As manifestações não foram poucas e Thadeu passou o dia assistindo em transe. O mundo estava perdido. Queria entender a mente daquelas pessoas. Quer dizer, era melhor não.


****

No dia seguinte, acordou e foi logo ligar a TV, esperando ver mais passeatas. Mas elas pareciam ter parado. O canal estava passando uma maratona de desenhos e Thadeu ficou um bom tempo matando as saudades de alguns antigos.

Resolveu ligar para a irmã; há muito tempo não falava com ela. 


– Maninha! Como está tudo aí?

– A gente está se adaptando, né? Voltar à vida normal é bem estranho.

– Você chama isso de vida normal?

– Ah, Thadeu, é claro que não é o normal de antes, mas já está bem melhor…

Ele soltou um muxoxo.

– Bom, como estão os catarrentos?

– Você sabe que não gosto de você chamá-los assim… Ah, estão aqui se divertindo, ganharam presente hoje.

– Decidiu fazer uma boa ação?

– Até parece… É que no Dia das Crianças eu sempre dou.

– Mas hoje é 9 de junho, você podia ter esperado quatro meses, né?

– Tenho que ir lá, o Mateus está berrando! Beijos.


Thadeu ficou olhando para o nada, segurando o fone. Marisa, tão sovina, comprando presente antecipado… O mundo dava voltas.

Thadeu estava entediado. Ficar sozinho preso em casa era a pior coisa. Decidiu que o melhor a fazer era ver mais desenhos animados; pelo menos não havia ninguém ali para julgá-lo.

Já na hora de dormir, ele pensou com expectativa: “Amanhã é o grande dia!”


****

Acordou pulando da cama com o despertador. Há 30 anos ele estava chorando numa maternidade, vendo o mundo pela primeira vez. Aquela era a hora exata da sua chegada.

Foi saltitando até a cozinha preparar um café da manhã caprichado. Só lamentava não poder sair com os amigos para comemorar, mas pelo menos ia receber muitas mensagens, falar com várias pessoas pelo telefone.


Como tinha saído das redes sociais e tirado o WhatsApp, acabava ficando dependente de quem realmente sabia seu aniversário. Culpa sua também. Bom, ainda estava cedo, ele tinha se apressado para nascer.

Deu uma passada de olhos nas notícias, não gostava muito de ver porque o deprimiam. Muitos tributos aos mortos, pessoas que se arriscavam indo a cemitérios. Não aguentou e saiu do site. Não iria ficar triste no próprio aniversário.


A manhã foi passando e nenhuma mensagem ou telefonema. Seria possível que, com o feriadão, todo mundo estivesse tão desligado?

Resolveu ligar para o André. Ia pegar no pé daquele mala.


– Fala, mandrião!

– E aí, biltre, o que você manda? Aproveitando a folga?

– Não está esquecendo de nada?

– Humm… Putz, a festa de Halloween, né?

– Do que você está falando?

– Ah, também esqueceu! A festa na casa da Mariana. Foi sábado.

– Em plena pandemia?!

– Ih, cara, você não está bem, não… Já está podendo ter festa, só não pode ficar lotado. Mas conta, o que foi que eu esqueci?

– Meu aniversário, claro. Deixa de fingir.

– Você não faz em junho?

– Então, cara…


Thadeu congelou, fitando a TV. Na chamada estava escrito "2 de novembro". Finados.

– Nós estamos em novembro?

– Eu sei que o ano passou rápido depois que a quarentena acabou, mas você está desnorteado.

Thadeu ficou em transe olhando para a televisão.

– Ei, alguém aí? – perguntou André.

– Como você está? Saindo normalmente?

– Humm, sim, aproveitando o “novo normal”, como as pessoas gostam de falar. Claro que a gente tem que ficar atento, pode ser que do nada voltem com a quarentena, mas está tranquilo, né? Vamos ver quando chega a vacina.

– Ah, cara, que bom saber. A partir de setembro já dava para ter uma esperança.

– É, mais ou menos por aí, tem 2 meses que respiramos muito mais aliviados.

– Foi bom falar contigo. Algum dia a gente marca uma cervejinha. Abraços!


Thadeu desligou. Algum dia longínquo… Ou será que o tempo continuaria naquela progressão louca? Ele torcia para que, do nada, semana que vem já fosse 2021 e o pesadelo tivesse acabado.

Apesar da esperança que o amigo lhe dera, não tinha coragem de sair. E se aquele espaço-tempo louco só tinha conexão com seu apartamento? Poderia sair e ainda encontrar um mundo em plena pandemia.


O jeito era ficar em casa e não ganhar nenhum parabéns. Será que poderia contar 2020 como ano de vida ou em 2021 ainda teria a mesma idade de 2019?

Mais uma vez passou o restante do dia grudado na TV, agora curioso para ver o futuro. Todos os lugares funcionando sem necessidade de preocupação, pessoas trabalhando, se abraçando, passeando… Pelo menos era bom ver que as coisas iam melhorar, claro que com toda a atenção.


****

Mais um dia. Thadeu não sabia mais o que esperar. Que surpresas lhe aguardavam?

Para se distanciar um pouco da TV, entrou num portal de notícias para descobrir como andava o futuro. A surpresa da vez é que ele tinha voltado a junho. Confuso, percorreu as manchetes, até que uma deu um estalo nele: “Tapetes de Corpus Christi enfeitam a cidade”.

Hoje não era um feriado adiantado, já fazia parte da semana e fora emendado com os outros.

Estava de volta à realidade caótica.


Thadeu se recostou no sofá, desanimado. Bom, voltaria à sua rotina de séries e videogame, e restava esperar que o dia seguinte mantivesse a progressão.

15 de novembro não tinha nada de especial, mas ele poderia checar a data no celular e na TV. Antes já tinha achado que estava no lucro, porque em novembro o feriado cairia num domingo, não numa sexta, mas nem poderia imaginar como seria preciosa aquela antecipação.

Depois da frustração, ele estava decidido: iria sair de casa para ver o mundo ao vivo.


****

Como será que estaria o futuro? Thadeu estava ansioso para testemunhar. 

Por via das dúvidas, pegou vários frascos de álcool em gel e máscaras e luvas sobressalentes. Um face shield também caía bem.

Todo paramentado, ele pegou o elevador. Já na rua, viu poucas pessoas de máscara. Parecia que alguns lhe lançavam olhares de estranhamento. Ele sempre tinha sido neurótico, exagerado, ninguém saía tão cheio de coisas assim.


Tinha a impressão de que estava vivendo um dia mais ou menos normal pré-pandemia. Mas uma quantidade considerável de pessoas na rua não significava nada para aquele povo sem noção. Precisava confirmar ainda.


Foi andando pela rua principal até o lugar que iria lhe dar a certeza. E lá estava: a universidade repleta de alunos. Os olhos de Thadeu marejaram. Ele ficou parado, embevecido, por um bom tempo, até levar um esbarrão de um estudante.

Caminhou mais um pouco e viu uma escola e uma creche funcionando. A essa altura, vendo como estavam as pessoas ao redor, tirou o face shield e até as luvas, mas não teve coragem de ficar sem máscara.


A primeira coisa que decidiu fazer foi visitar seus pais. Deu um abraço apertado neles, beijos, e passou um tempão conversando, matando as saudades. Infelizmente não poderia ficar lá o dia todo, então foi correndo visitar Marisa e Michael. Os catarrentos estava bem e, para variar, Mateus berrava. Ele perguntou pelo presente de Dia das Crianças e a irmã exibiu uma expressão interrogativa: por que tinha se lembrado disso do nada? Mal sabia ela…


Já de noite, ligou para André e marcou um chopp. Resolveu fazer hora na praça e no shopping para admirar o fluxo de pessoas.

Na hora combinada, começou os trabalhos no barzinho, mas logo apareceu o amigo.

– Há quanto tempo, camarada! – exclamou Thadeu.

– Também não exagera, a gente se viu semana passada.

Entre os dois feriados… Fazia sentido.


Conversaram, gargalharam, falaram mil besteiras. O tempo passou voando. De repente, Thadeu viu que eram 23h30. Ele parou no meio de uma frase, sem saber o que fazer. Quando passasse de meia-noite, o que iria acontecer: continuaria ali ou iria parar em casa no dia 13 de junho? Seria melhor ir para casa ou aguardar?

Bom, talvez desse no mesmo, então preferiu ficar e aproveitar pelo menos meia hora com o amigo.

– Ei, cara, tá tudo bem?

– Hum, sim, sim, só me lembrei de uma coisa, nada de mais.


Os minutos foram passando e o nervosismo de Thadeu só aumentava. Com o coração acelerado e a bebida subindo à cabeça, ele decidiu ir ao banheiro. Sentindo-se um pouco mal, meio zonzo, ficou sentado, tentando se recompor. Fechou os olhos, inspirou e expirou fundo, inspirou e expirou, inspirou e expirou… Parecia estar melhor.


Quando abriu os olhos, viu-se no banheiro de casa. Não era possível. Procurou o celular, até encontrá-lo no quarto.

00h01 do dia 13 de junho.


Thadeu desabou na cama, arrasado. Sua degustação do futuro tinha chegado ao fim. Agora lhe restava esperar pelo menos três meses…

Mas saber que as coisas iam melhorar já era um consolo. E faria campanha para que as pessoas respeitassem o isolamento e aquilo tudo terminasse o quanto antes. E talvez voltasse às redes sociais para interagir mais com a família e os amigos.Televisão demais não estava fazendo bem a ele. Mas um pouco de videogame não poderia atrapalhar…


Foi dormir e sonhou com o que estava por vir.