segunda-feira, novembro 12, 2018

A herança

– Boa tarde. Quem fala é a srta. Júlia Pitanga?
– Sim, é ela. Quem gostaria?
– Meu nome é Everardo Nascimento. Sou advogado do seu tio Afonso Bandeira. Lamento informar, mas ele faleceu recentemente.
– Nossa, não tinha notícias dele há algum tempo. É uma pena...
– Sim, sei que a senhorita não tinha tanto contato, mas é a parente mais próxima, por isso foi incluída no testamento.
Júlia não soube o que responder. Ela ia receber uma herança?
– Quando poderíamos nos encontrar para uma conversa? – perguntou o advogado.
Os dois combinaram o encontro para o dia seguinte e Júlia desligou. Ela estava muito ansiosa.

Ao chegar ao escritório de Everardo, se sentou e aguardou, na expectativa.
– O sr. Afonso deixou como bem a casa onde morava, simples, mas bem cuidada – começou o advogado. – E... tem outra coisa, um tanto quanto exótica. Está lá na casa. Gostaria que a senhorita fosse comigo para que eu mostrasse.
Com a pulga atrás da orelha, Júlia aceitou. Foram no carro dele.

A casa até que ficava bem localizada e pareceu simpática. Deram uma olhada nos cômodos e Júlia logo se imaginou morando ali, refazendo sua vida. Mas restava uma dúvida:
– Onde está a tal coisa exótica?
– Ah, sim, vamos para o quintal dos fundos.
Everardo abriu a porta e Júlia saiu. Foi então que viu aquela enormidade.
– É uma tartaruga?
– Na verdade, um jabuti, pois vive na terra. É uma fêmea e se chama Talita. Já tem 90 anos, por isso é tão grande: tem uns 70 centímetros.
– Vou ter que cuidar dela? Não seria melhor mandar para um zoológico, alguém que entenda de jabuti?
– Seu tio deixou claro no testamento que a senhorita só poderia ficar com a casa se cuidasse da jabota.
– Tudo bem, é o jeito...

Nos outros dias ela veria toda a papelada, burocracia. Agora precisava pesquisar o que aquele animal comia. Foi até o mercado perto da casa e comprou os alimentos. Colocou tudo numa bacia e a depositou perto do bicho, junto com uma tigela de água. Talita esticou o pescoço e começou a devorar a refeição com eficiência. Não deixou nada. Ela ia dar trabalho.

Júlia trancou a casa e foi buscar alguns pertences pessoais. Queria passar aquela noite na nova residência, depois falaria com o proprietário que iria sair do apartamento alugado.
Quando voltou para a casa, Talita dormia profundamente, ainda no mesmo lugar. Transmitia uma serenidade... Deu vontade até de dormir. E foi o que Júlia fez.

No dia seguinte, ela acordou no susto. Nossa, já estava muito tarde. Saiu correndo para começar a resolver as questões legais e a encaixotar suas coisas.
Ao retornar, no fim da tarde, se assustou com um movimento na cozinha. Com o coração aos pulos, viu que era Talita, entrando vagarosamente. A jabota passou o focinho pelo chão, como se pedisse algo.
Coitada, tinha ficado o dia inteiro sem comida! Pegou o que tinha sobrado das compras e estendeu para a bichinha. Ela foi comendo direto da mão de Júlia, às vezes quase arrancando-lhe os dedos.
Quando acabaram os legumes, verduras e frutas, as duas ficaram se olhando.

– Você deve estar triste com a morte do tio Afonso, né? Nem dei bola para a sua perda. Desculpa... – Jília esticou a mão, hesitante, e acariciou a cabeça dela. – Eu também acabei de perder meu namorado. Ele não morreu, só me deixou. Mas é tão doloroso, moramos juntos há tanto tempo... – Ela enxugou as lágrimas que caíam. – Eu precisava deixar aquele apartamento, só me trazia lembranças ruins. Esta casa veio na hora certa.

As duas ficaram lado a lado um tempão, em silêncio, até que Talita começou a andar, devagar, e sumiu no quintal.

A partir do dia seguinte, Júlia criou uma rotina de alimentar Talita e conversar com ela. A papelada se resolveu, ela entregou o apartamento, a casa ganhou a sua cara.
E lentamente, a passo de jabuti, ela foi se recuperando.

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