domingo, abril 07, 2019

Seis horas

– Preparem-se para o resultado do sorteio! O sorteio mais esperado do ano! O sorteio mais aguardado por todo o planeta!
Lúcia está com o bilhete, as mãos suando de nervosismo.
– Como todos sabem, só haverá um ganhador mundial. É o prêmio mais cobiçado!
Gente do céu, esse cara não para de falar...
– Chegou o momento! A gigantesca bola vai descer aqui na Times Square!

A câmera se afasta e dá uma panorâmica, a multidão aglomerada na expectativa.
– A bola está descendo! Ela se abriu e cuspiu uma bolinha!
Lúcia está quase amassando o papel todo, mas se contém para não estragar o bilhete.
– Vamos ver... – O apresentador confere a bolinha e a mostra para as câmeras. – Número 4.354.350! De onde será o felizardo ou felizarda? Saberemos em breve!
Ela está vidrada e esquece completamente de verificar seu bilhete.
– O ganhador é do Brasil! Lúcia Matoso de Almeida!

Lúcia quase tem um treco. Não consegue nem gritar para comemorar.
Lentamente, ela sai do seu torpor. Enfim olha para o bilhete e confirma que bate com o número que pisca na tela.
Ainda sem acreditar, vai até a cama e, só então, dá um berro, dormindo na mesma hora.


*****
Lúcia acorda com a mente enevoada e demora um tempo até lembrar o que aconteceu na noite passada. Precisa ir ao banco mais perto o quanto antes, tomando cuidado de não chamar atenção.
Ela vai até os fundos da agência, um local mais discreto. Uma máquina lê sua retina e suas digitais, depois cruza os demais dados biométricos com o resultado do sorteio.
– Parabéns, sra. Almeida! Aqui está o seu prêmio. – O gerente lhe entrega um dispositivo. – Basta seguir as instruções no dia 31.
Lúcia agradece e enfia o aparelho na bota. Precaução nunca é demais.

Ao chegar em casa, ela aperta um dos botões e ouve a gravação:
"Megabissexta! Este dispositivo só funciona no dia 31 de dezembro. Ao fim do dia, você será a única pessoa na face da Terra a desfrutar de seis horas extras, ou melhor, cinco horas, 48 minutos e 46 segundos. Aproveite ao máximo!"

Lúcia nem se lembra mais da última vez que passou por um 29 de fevereiro. Antes era a forma de compensar as horas acumuladas ao longo de quatro anos da translação da Terra. Mas para tudo se acha forma de faturar e abriram-se inscrições para se usufruir anualmente das horas extras.
Agora ela precisa esperar trinta dias. Trinta longos dias.


*****
É chegado o dia 31. Todos se preparam para o réveillon, para os fogos, as festas, mas Lúcia só tem olhos para seu dispositivo. Sua contagem regressiva não é para o novo ano.
Ela não faz a mínima ideia de como será a experiência, pois os ganhadores são proibidos de contar. Claro que existem boatos, mas nada comprovado.
Será que os organizadores do sorteio elaboram um período especial para o vencedor? Lúcia não quer que seja nada espalhafatoso, não mesmo.

Ela aperta o botão e um raio laser lê suas retinas e faz todo o procedimento como o do banco.
Começa a contagem: 10, 9, 8, 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1...
Lúcia sente a visão escurecer. Quando tudo clareia de novo, olha em volta atarantada. Mas ela continua em casa e tudo parece estar exatamente igual.

Frustrada, resolve sair de casa e dar um passeio para aproveitar as horas. O silêncio é sepulcral. Nenhuma comemoração de ano-novo, nenhuma risada, grito... Bom, no fim das contas ela ainda não está no novo ano, né? Então isso significa...

Lúcia aperta o passo até a rua principal. Está deserta. Continua andando, mas não se vê ninguém. O único barulho são ocasionais arrulhos de pombos ou trinados de aves.
Mais adiante, vê um carro no meio da pista, como se congelado no meio do caminho, só que vazio.

Lúcia admite que sente uma satisfação, até uma espécie de alívio. Sempre foi antissocial e nada melhor que um mundo sem gente, só para ela. Por seis horas!
Poderia ir àquele parque lindo sem tanta barulheira... Mas não dirige e não tem como pegar ônibus nem metrô: não existem motoristas. E se pegasse uma bicicleta da estação? É meio longe, mas sem trânsito seria uma maravilha, imagine a liberdade!
Ela corre para não perder tempo, suas horas vão se reduzindo. Dispara pelas ruas, o rosto açoitado pelo vento.

Larga a bicicleta e vai caminhando calmamente pelo parque. Engraçado que os animais também estejam naquelas horas extras. Então faz uma coisa que sempre quis fazer: nadar no laguinho. Tira todas as roupas e se joga na água. Alguns patos assustados batem asas para longe.
Lúcia boia por um tempo, admirando o céu estrelado. Satisfeita, sai do laguinho e se deita na grama. Ainda tem horas para aproveitar. Só não pode cochilar.

Quando acha que já está suficientemente seca, ela se veste e decide tomar um café naquela cafeteria 24h deliciosa. Ao chegar ao local, se dá conta de que ninguém vai poder fazer o café dela. Comeria também aqueles doces sem pagar? Não seria correto, vai deixar um dinheiro no balcão. Mas será que o dinheiro vai continuar ali quando as horas extras acabarem?
Bom, não custa nada pegar um mil-folhas e, ano que vem, aparecer lá dizendo que vai quitar um doce fiado – mesmo que eles nunca vendam fiado a ninguém.
Lúcia pula o balcão e se lambuza com o doce, aliás, dois doces.

Bem que aquelas horas poderiam ser de dia, não de madrugada. Ela pega a bicicleta e vai vagando a esmo, até ver um lugar interessante iluminado. Parece que estava tendo ali uma festinha simpática, mais intimista, no estilo que Lúcia gosta. A casa é bem bonitinha, e talvez, na verdade, fosse residência de alguém, não um estabelecimento.

Lúcia resolve explorar o lugar, cada vez mais atraída. Então congela diante de um porta-retratos. Ela está na foto. Mas como isso é possível?
Com um calafrio, se vira para a foto ao lado... e vê sua mãe. Sua mãe mais nova, sorridente. Amélia.
Sente um aperto no coração. Elas brigaram há anos, Lúcia se afastou, perderam contato... Ela nunca quis admitir que isso faz diferença. Na verdade ainda não quer.

Já que seu relógio não funciona naquele mundo paralelo, confere o dispositivo, que ficou no seu bolso. O tempo está se esgotando. Lúcia precisa decidir o que fazer. Depois das horas, será que vai acordar aqui ou em casa?
Ela iria memorizar o local, ver o endereço, deixar um bilhete? Ou esquecer aquilo tudo? Após refletir muito, pensa que não deve se sentir culpada pelos próprios atos e toma uma decisão.
Então o tempo acaba e tudo escurece.


*****
Quando a claridade atinge seus olhos, ela pisca. Está cansada da noite intensa. Vê que está no sofá e se levanta, doida para dormir um pouco. Quando se aproxima da mesa da sala, repara num papel estranho.
Só que é muito mais que isso e as lágrimas brotam.

Amélia não sabe como Lúcia conseguiu deixar aquele bilhete, mas vai ligar agora mesmo para ela.

Nenhum comentário: