domingo, dezembro 25, 2011

Otto

Otto von Schmerz é um ilustre acadêmico. Aclamado em todas as importantes universidades — seus artigos são citados à exaustão pelos catedráticos —, grande estudioso da língua materna. Apesar do nome germânico, tem como pátria a nação brasileira, mas isso não o impede de conservar no sangue o rigor e exatidão alemães. Abomina todo e qualquer erro e procura sempre passar longe de pessoas e lugares onde seus ouvidos podem absorver palavras deturpadas. Ou melhor, tenta nem mesmo ouvir o que é dito ao seu redor sobre sua língua idolatrada.

Absorto em seus pensamentos corretos, o acadêmico não percebe um desnível no chão, e seu corpo é projetado dolorosamente. Antes que possa se recompor, para seu horror, alguns logo vêm socorrê-lo. Despreparados, seus ouvidos captam uma palavra com um grave erro, e ele sente uma forte dor, como se os tímpanos fossem estourar. Sem querer demonstrar nada, von Schmerz não se digna a olhar os demais e apenas parte andando o mais rápido que pode.

Os ouvidos parecem estar mais sensíveis agora, e ainda latejam. Desnorteado, o catedrático adentra seu carro, e o motorista o leva para casa. Conseguira esse ótimo chofer surdo-mudo, que nada conversa com ele. Finalmente, já se encontra em casa. A governanta, sempre tão eficiente, estranhamente não aparece. Na cozinha, há um bilhete sobre a mesa. Temeroso, ele apanha o papel e, ao dar com o texto, seus olhos sofrem uma dor aguda. Ele larga bruscamente o papel e, sozinho agora, grita. Não havia nada de errado, mas... havia uma forma coloquial. O que estava acontecendo com ele?

A biblioteca, a biblioteca. Ele precisa se refugiar em sua biblioteca. Os clássicos abençoados o esperam lá. O único lugar onde não há perigo. Nenhum erro. Nenhuma informalidade. O acadêmico apanha um tomo raro na prateleira e acaricia a capa. Aliviado, senta-se em sua poltrona. Só quer abrir ao acaso o volume e ler qualquer trecho daquela história que já lera diversas vezes. Precisa tomar ar.

Página 125. Ele pousa o dedo sobre o papel para começar... contudo sente uma dor atroz. Não é possível, ali não poderia ter nada. Seu corpo diz que ele não pode olhar, mas a curiosidade é mais forte. O olho lateja terrivelmente. Não, ali havia palavras erradas, com acentos inconsequentes, traços que nem se usavam mais!

O livro já queima em suas mãos e desaba no tapete. Otto se levanta e olha ao redor, e as lombadas parecem querer feri-lo. Não se dera conta até aquele momento, mas o mundo todo estava errado. Ele não podia mais ler.

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