terça-feira, janeiro 06, 2009

Ilda

19 de dezembro. Esse foi o dia da primeira ligação. No estágio. Atendo o celular. Ligação a cobrar. Espero - quem sabe se não é alguém mesmo? Escuto uma voz estranha de um homem, falando seu próprio nome. Que não entendi, mas dá pra perceber que é engano. Desligo sem falar nada.

Lá está o celular tocando de novo. Desligo sem cerimônia. Mas por que não aviso que é engano? Ah, já não é a primeira vez que alguém me liga direto por engano.

No ônibus, indo para uma festa. Celular. Já decorei o número do celular, lá está ele. Sem paciência, resolvo dar uma trégua. Atendo. Ligação sem cobrar. "Ilda?" Meu nome é Gabriel. Falo com o senhor, acho que entendo algo de hospital e esposa. Engano, desligo.
Muitas vezes o celular ainda toca, muitas vezes eu desligo.

Outro dia. O número fatídico. OK, eu atendo. "Ilda?" "Quero falar com minha esposa. Tá caindo errado." "Senhor, o número que está errado, não tem como cair várias vezes errado."

Fico com pena do homem. Ele tem um jeito de falar de pessoa humilde, parece de interior. Está realmente querendo achar Ilda. Parece algo urgente, premente. Será mesmo um hospital?

Mas como ele não sabe onde está a esposa? A esposa fugiu, ele tem um número falso. O meu número pertencia à esposa. Ela se livrou do número. Ele não está bem, está num hospital. Quer falar com ela.

O celular toca. Atendo. Ligação a cobrar. Os créditos sumiram. Continuo. "Ilda?" Explico novamente ao senhor.
Nova ligação. Mais desculpas. Ele não consegue, não quer entender o que se passa.

Sou muito curioso. Por que não pergunto o que está acontecendo? Mas pra quê? Em que me interessa de fato? Deixa o homem sofrer sozinho.

Ele não ligou mais. Acho que entendeu.

Descanse em paz.

5 comentários:

milamione disse...

Nossa,que sofrimento... coitado :/

Figo disse...

Uma história triste tecida por enganos....as vezes me pergunto o quando nossa vida não é feita de enganos?
Um sucessão de erros talvez. As vezes conheço pessoas que parecem ligar por engano para a vida, só encontram desilusões....


Parabéns por este conto, me inspirou eeheheh

Pedro Lyra disse...

História triste, mas infelizmente comum. Não quero tentar criticar o final, mas nem sempre nos envolvermos significa que vamos sofrer juntos, talvez o sofrimento diminua ou acabe se tentássemos entender o próximo.Mas não é tão simples, hoje em dia está difícil demais lidarmos com nossos problemas, que não nos sentimos capazes de cuidar dos outros.
Grande abraço primo!

Gabriel Machado disse...

Na verdade, não era nem questão de sofrer junto, mas tinha a sensação de que seria intrometido, e também era uma questão que parecia distante, longe da minha ajuda...

Até cheguei a pensar em perguntar quando ele ligasse de novo, mas ele nem ligou.

Unknown disse...

Adorei o estilo da sua escrita. Períodos estremamente curtos dando velocidade na leitura, remetendo à própria situação! MUITO BOM