domingo, janeiro 27, 2019

Bibliomania

Gustavo sempre admirou a biblioteca do avô. Desde pequeno, ele entrava no cômodo com a estante grande repleta de livros. Pegava os volumes que estavam ao alcance, escalava a poltrona e ficava folheando, mesmo que não entendesse muito bem. Foi crescendo e atingindo prateleiras mais altas, se acomodando melhor na poltrona, entendendo mais.

O avô o deixava mexer, mas nunca lia para ele, queria que o neto explorasse por conta própria, tivesse uma independência. Também não o deixava tirar os livros da biblioteca; deveriam ficar ali sempre. Se não terminava no dia, marcava a página e só podia continuar quando voltasse.
Hoje era dia de visita, mas Gustavo nem pensava na biblioteca. Estava nervoso imaginando que o avô já devia saber o que ele havia feito no colégio. Não queria decepcioná-lo, ainda mais na situação atual.

Chegou à casa do avô e foi para seu quarto. Ele estava na cama, mas não parecia mal. Bom sinal. Gustavo se aproximou e afagou a mão do avô.

– Como você tá?
– Estou indo. – O avô deu uma risadinha e o garoto fez uma cara de preocupação. – Não, não indo embora. Só estou mais ou menos. Nada de mais.
Gustavo pareceu ficar um pouco aliviado. Ainda estava tenso.
– Vô, desculpa...
– Pelo quê?
– Bom, você sabe...
– O furto no colégio? Imagino que seus pais já tenham conversado contigo e te dado uma punição. Nisso eles não falham. Além do mais, não tenho nenhuma moral para criticar você...

Ele ficou pensativo, fitando o nada. Gustavo franziu a testa.
– Como assim?
O avô continuou a refletir. Então falou:
– Acho que chegou a hora de eu me redimir.
Antes que Gustavo pudesse impedir, o avô se sentou e pôs os pés para fora da cama.
– Vô, você ainda não tá bem!
– Calma, Guga. Venha comigo.

Arrastando os pés, o avô conduziu Gustavo até a biblioteca. Ele se sentou na poltrona e ficou fitando a estante.
– Vô?
– Ah, desculpe... Acho que preciso te contar um segredo. Feche a porta, por favor.
Gustavo obedeceu, intrigado.

– Você gosta tanto desta biblioteca, merece saber a verdade e... fazer alguma coisa.
– Do que você tá falando?
– Aqui neste cômodo há uns 200 livros. Livros que fui acumulando aos poucos, que me dizem muito, que me emocionam, que aumentam meu conhecimento, que são importantes de alguma forma. Mas eu me envergonho da origem deles. Era uma compulsão.
– Como assim?
– Todos os livros foram roubados da biblioteca estadual.

Gustavo ficou boquiaberto, chocado. Apenas encarou o avô, sem palavras. Então começou a rir.
– Muito bom, vô, me pegou direitinho.
– Não estou brincando. Eu pegava um livro por vez, esperava o prazo e fingia que devolvia, burlando o sistema da máquina de devolução automática. Eu me aproveitei da confiança da biblioteca. Não conseguia parar. Fiz isso por anos.

O garoto estava desnorteado, olhando para todos aqueles livros.
– Você ainda... pega livros e não devolve?
– Não. Um dia ouvi uma menina se lamentando na biblioteca porque não conseguia achar um livro e não tinha dinheiro para comprar. No mesmo dia, fui em casa, peguei esse livro e o deixei numa cadeira na surdina. E parei com meus delitos. Mas não reuni coragem para devolver o restante. Já pensei em ir levando um por vez...

Ele se calou. Aquela situação era grave. O avô ainda devia ter se dado ao trabalho de tirar qualquer vestígio da biblioteca estadual, pois Gustavo nunca vira nada estranho.
O garoto refletiu por um longo tempo sob o olhar nervoso do avô. De repente se levantou, saiu do cômodo, depois voltou com várias caixas de papelão. Começou a colocar dentro os livros.

O trabalho se estendeu por horas, até porque o avô não podia ajudar muito. Ao fim, a estante estava vazia.
– Nenhum desses livros era seu?
– Alguns, sim. Mas a biblioteca merece recebê-los.

Gustavo combinou com o pai de levar tudo de carro. Inventou que o avô resolvera fazer uma boa ação. O bibliotecário se espantou com a quantidade e agradeceu, mas o menino fingiu que não ouviu.
Ao voltar para a casa, ele pediu ao avô que fizesse uma doação anônima à biblioteca. Era o mínimo naquela situação. Eles poderiam aumentar o acervo, melhorar a estrutura. O avô concordou e Gustavo o abraçou.
Já estava na hora de ir embora. Os dois se despediram.

Dois dias depois, Gustavo ouviu baterem à porta de seu quarto. Ao abrir, viu o pai com os olhos marejados.
– Guga, preciso te dar uma notícia... – Ele lutou contra as palavras. – O vovô partiu.
A tristeza tomou conta de Gustavo. Não iria mais ver o avô.
– Como ele morreu?
– Ainda não sabemos exatamente, mas o encontraram sentado na poltrona da biblioteca. Parece que foi uma morte serena. Ele já devia saber que ia morrer, né? Doou todos os livros.

Gustavo concordou. Quem sabe agora estava curado, lendo na grande biblioteca celeste.

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