quinta-feira, março 16, 2006

"Um corpo na gaiola"

Juntando-se a meu habitual esquecimento, veio o início da faculdade para desestabilizar meus posts aqui, mas estou de volta agora. Este é outro dos textos meio desatualizados, mas que vale a pena postar, ainda mais que é um gancho para outro post. Aqui relato a morte de meu passarinho e suas "consequências". Não leiam!
***
Num sábado de manhã, fui dar uma olhada nos "meninos" - como chamamos nossos passarinhos - e me deparei com uma cena imprevisível: na gaiola da direita, um deles estava estendido no chão, imóvel. Olhei bem e percebi que havia sangue junto às patas e ao bico dele, além de no pote de areia, que estava no canto oposto a ele, um pouco acima do fundo. O sangue era maior perto de seu bico aberto.
Desconfiei da esposa do falecido, Nicoll, uma linda mandarim parda, que brigara muitas vezes com o marido e dava muita bola para o macho vizinho, Joe. Numa daquelas brigas, ela poderia ter machucado "Rabudinho", o esposo, só para ficar com o outro. Olhei prontamente para ela, procurando vestígios de sangue, mas nada vi. Era pouco provável que ela conseguisse fugir de uma gaiola para outra, ainda tendo que brigar com a outra fêmea, Janaína. A não ser que tivesse um plano engenhoso em mente.
Resolvi chamar um médico para me informar melhor e, quando telefonava, minha irmã chegou. Tive de informá-la da má notícia, dizer-lhe que o pássaro durara pouco mais que um mês e meio. Triste, ela retirou cuidadosamente o corpo da gaiola e, juntos, analisamos. Logo vimos como ele morrera: o bico por dentro estava todo sujo de sangue, logo ele cuspira sangue por causa de hemorragia. Daí a grande quantidade de sangue junto ao bico. Mas por que isso acontecera? E como o sangue fora parar no pote, junto à base, justamente do lado oposto para onde o bico estava virado?
De repente, a campainha tocou. Quem seria? Abri-a de chofre e dei de cara com o médico, acompanhado por dois tiras. Ele encarregou-se de explicar que achara melhor chamarem policiais para investigar. Assenti e deixei-os entrarem. Os três foram para a sala, onde minha irmã colocara o corpo num papel-toalha, em cima de um móvel. A luz batia próximo ao morto, incidindo também nas "meninas" - dessa vez, são as nossas jabotas - que tomavam banho de sol. Nessa cena pitoresca, o médico-legista analisou o corpo detidamente e confirmou nossa hipótese, além de supor que o pássaro morrera há pouco tempo, entre uma hora e duas horas atrás. Mesmo assim, ainda iria fazer uma autópsia para tirar qualquer dúvida.
Agora era a vez de olhar a cena do crime. O médico e os policiais criticaram minha irmã por não deixar o corpo do jeito que estava, ainda mais que ela não usara luvas, estragando possíveis digitais. Ela colocou o corpo de volta ao seu lugar, e nossas suposições continuaram a ser confirmadas, mas o sangue do pote, por enquanto, continuava indecifrável.
Os policiais chamaram a mim e a minha irmã para nos fazerem perguntas. Afastados das gaiolas, nos revelaram que Nicoll era a principal suspeita, ainda mais que era muito parecida com a famosa assassina procurada pela lei, apelidada de Viuvinha-negra. Olhei espantado para Nicoll, que me lançou um olhar indiferente. Os tiras a interrogaram e tiraram suas digitais para comparar com as da assassina. Todos os outros pássaros, inclusive os calafates que vivem no viveiro em baixo, deram depoimentos, mas não se chegou a nada: eles estavam tomando banho ou comendo ou fazendo cafuné um no outro, em suas vidas atarefadas e estressantes. Até as meninas depuseram, mas elas alegaram que tinham uma visão muito ruim, além de nem terem orelhas.
Desanimados, os três foram embora, prometendo ligar para dar notícias, e deixaram um telefone de contato. Ficamos em casa sem fazer nada, encucados com aquilo tudo, enquanto os passarinhos ficaram torrando nosso saco, pedindo recompensas por responderem perguntas tão enfadonhas, querendo que trocassem a água da banheira ou dessem arrozinho ou vitamina. As jabotas resolveram repetir a tática e começaram a pedir peixe. Irritado, coloquei-as na cozinha e tranquei a porta, enquanto nos refugiávamos na sala.
Nessa hora, foi a vez de meu pai chegar, depois de andar de bicicleta. Espantado, ele foi bombardeado por informações que começamos a dar sobre a morte de "Rabudinho", que meu pai cismava de chamar de Zento; o pássaro novo não recebera um nome fixo, por não entrarmos em consenso, e acabara morrendo assim. Nosso pai observou a gaiola, intrigado, sem entender o que acontecera.
Depois de muita reflexão, ele entendeu tudo - ou pensava que tinha entendido - quando o telefone tocou. Era um dos tiras, dando o resultado da autópsia e fornecendo as hipóteses. Meu pai conversou com ele e confirmou tudo: o passarinho morrera por causa de um fio de náilon do ninho, que ele gostava de ficar puxando. O fio acabou machucando-o e assim ele morreu. Já sabendo que Nicoll não era a Viuvinha-negra, o tira chamou nosso pai para depor.
Porém, ele não voltou da delegacia. Liguei para lá e descobri que ele fora preso por homicídio doloso, pois comprara aquele ninho e, mesmo sabendo do fio, não fez nada para tirá-lo. Com raiva, fomos para o lugar onde ele estava temporariamente encarcerado e, lá, começamos a discutir com os policiais, argumentando. Os tiras nos acalmaram, dizendo que logo, logo meu pai iria sair da cela, pois ninguém ficava muito tempo na prisão.
Ainda com raiva, saímos da delegacia e fomos para casa. Eu ainda estava desconfiado da Nicoll, mas não tinha provas. Zento, o verdadeiro, o pseudo-imortal, sempre vivera bem até Nicoll chegar e acabara morrendo, talvez por causa do amante Joe. E agora, o substituto dele, "Rabudinho", morrera. Muita coincidência. Para mim, não importava: continuaria a chamá-la de Viuvinha-negra.
Hoje, uma semana depois, Nicoll continua sem marido, mas ainda não fez nenhuma tentativa de fugir de sua gaiola. O corpo já foi enterrado num vaso com terra por minha mãe. Meu pai já está livre e, dentre em pouco, comprará outro mandarim para fazer companhia a Nicoll. Talvez uma maldição pese sobre ela e, depois de um tempo, haverá a terceira vítima...

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